Nem preciso dizer que meu pai e minha “vó” Edith viviam em discussões. Quantas e quantas vezes ele não saiu do apartamento da Barra esbravejando que jamais voltaria, enquanto minha avó praguejava do outro lado com as mãos levantadas e respondia que nunca mais se dirigiria a ele novamente sob o risco de Deus puni-la se ela quebrasse com a palavra. É óbvio que Deus nunca levou isso a sério.
Os motivos eram variados, mas sempre por conta de opiniões divergentes sobre dinheiro, parentes, confiança demais a algum empregado, falta de pulso com vizinhos folgados e por aí vai. Às vezes a conversa começava até bem, mas bastava uma bobagem, um jeito de olhar mais irônico de um deles ou uma palavra considerada mais sarcástica para aquecer os ânimos. Menos até. Com minha avó ficando surda, vira e mexe ela perguntava: “O que Antonio, como é?”. E aí o bicho pegava: “Não é possível, Edith, faça uma lavagem nesse ouvido, você está completamente surda!”. Ele então se aproximava ainda mais dela, mais do que sempre já estavam, e começava a repetir em voz alta até ela dizer para ele parar, porque ela “não era surda!”. Enfim, coisa de doido.
Mas depois eles sempre se entendiam. Normalmente 15 minutos depois, quando meu pai ou ela tinha alguma outra “novidade” para contar. Mais ainda, dependiam disso diariamente. Acho mesmo que meu pai ficava nervoso com a surdez de minha avó com medo de um dia não tê-la para ouvi-lo. Eram “tecnicamente” genro e sogra, porém na vida eram muito mais: cúmplices de fofocas, solidários quando precisavam de algo, repressores dos empregados quando tinham a mesma opinião, teimosos quando se achavam certos, mas sempre família, sempre contando um com o outro, até mesmo brigados.
Prova disso foi quando em uma das poucas idas da minha avó ao médico – proporcionalmente aos 95 anos de idade dela, claro – foi diagnosticada uma anemia e entre outras coisas ela precisava de vitamina C.
– Eu não disse, eu não disse?! Você não come, não se alimenta, por isso está aí, ó, raquítica, com essas perninhas magrinhas, pele e osso!
– Ora Antonio, me deixe, eu não estou sentindo nada. Esses médicos não têm o que fazer e ficam gastando receita para justificar a consulta. Besteira
Depois desse discurso que ela sempre fazia com a segurança que tinha em tudo que falava, ele se levantou repentinamente e disse:
– Alguém quer alguma coisa da rua? Vou ali.
O “ali” ninguém nunca sabia aonde e também não ninguém perguntava. Era bom ele dar uma saidinha para a casa ficar silenciosa por um tempo.
– Vai Antonio, vai. Não pára quieto esse homem. Parece que tem fogo no rabo – Dizia minha avó, que não dava o braço a torcer, mas sentia uma falta danada daquela conversinha diária de fim de tarde. E ele foi. Mas não demorou muito. Como de costume, voltou buzinando do carro para o desespero de Zezé, minha eterna babá e anjo da guarda, que para não vê-lo nervoso descia correndo o quanto podia para ajudá-lo certamente a pegar alguma coisa que ele tinha trazido.
– Edith, Edith! – Berrava ele lá debaixo com o porta-malas aberto. Márcio, o vizinho do prédio em frente, a quem ele uma vez ameaçou matar sabe-se lá porque, espiava da varanda o que deveria ser mais alguma novidade de seu Antonio. A solteirona do prédio ao lado, sempre na varanda por qualquer coisa, também queria saber o motivo do berreiro.
– Edith! Edith! – esgoelava-se meu pai, a espera de minha avó na varanda do prédio.
– Fala Antonio, o que é pelo amor de Deus? Fica gritando aí, incomodando os vizinhos!
– Olha aí! Manda Maria José descer para me ajudar aqui.
– O que você comprou Antonio, eu já fiz supermercado, no que você foi gastar dessa vez? – Repetia minha avó, como sempre, por achar meu pai um descontrolado quando se tratava de compras.
Na verdade, ela o achava um descontrolado para tudo. E era mesmo. Aquele era um exemplo. Preocupado com a necessidade de vitamina C da minha avó, ele finalmente esclareceu:
– Aqui ó, você não está precisando de vitamina C? Eu trouxe. E levantou um dos dois sacos com nada mais nada menos do que dois centos de laranja pêra.
– Mas Antonio!!!!!
26 de out. de 2008
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Um comentário:
Numa dessas sobrou pra quem espremer as laranjas?
Coitada de Zezé...
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