5 de out. de 2008

Ninguém meta a colher

Eles estavam passando por mais uma das crises de silêncio, meu pai e minha irmã. Isso também sempre acontece com Raimunda, a nossa secretária do lar, como meu pai a apresenta. De vez em sempre, meu pai fica sem falar com elas ou elas com ele ou elas entre si, tanto faz.

Calma, calma, eu sei o que vocês estão pensando. Querem saber como ele consegue ficar calado, não é? Pois é, ele não fica. Apenas não fala diretamente com a pessoa. Para isso, tem minha mãe para servir de interlocutora.
– Marante, quero um copo d’água – pede ele na hora do almoço.
– Raimunda, por favor, traga um copo d’água para Antonio – repete minha mãe em tom de deboche para Raimunda, que já está ao seu lado fazendo caras e bocas.
– Está aqui dona Marante – diz Raimunda, colocando o copo à frente de meu pai.
– Obrigado, diz ele, sem exatamente se dirigir a alguém. E por aí seguiam os dias até que voltavam a se falar quando menos se esperava, mais amigos do que nunca.

Dessa vez a crise era com Cíntia. Estavam brigados, sabe-se lá Deus por quê. Mas uma coisa é ela estar brigada com meu pai; outra é alguém brigar com ele. É como amassar o próprio carro. Se a gente bate é chato, agora, se outro é que bate, o bicho pega.


Nesse dia, Cíntia estava na garagem. Ia trabalhar, mas seu carro estava "trancado" pelo de outro morador. Ela pediu a zeladora, dona Olga, que avisasse ao dono do veículo que o retirasse. A mãe dele, porém, mandou dizer que ele tinha viajado e levado a chave.

Quando voltou à garagem, onde esperava o namorado para lhe dar uma carona, percebeu o freio de mão do carro do vizinho solto. Não teve dúvidas, o empurrou, liberando a passagem, avisou ao namorado que tinha resolvido o problema e foi trabalhar.

Na volta, quando chega em casa, ouve o telefonema da vizinha, que a acusava de ter quebrado o carro por tê-lo empurrado. Mesmo já sendo uma senhora, de quem se espera um pouco de compostura, a mulher disse cobras e lagartos para minha mãe e meu pai, que inacreditavelmente se mantiveram passivos. Sem sucesso, Cíntia ouvia a conversa mandando que eles retrucassem.
O xingamento ia desde o mais baixo calão até acusações de meu pai ser um ladrão de vagas, além de um homem metido a rico por ter mais espaços na garagem. Como diria a própria Cíntia: uma palhaçada. Coisa que só a insanidade humana explica: uma briga por um buraco debaixo da terra.

Dois dias depois, meu irmão e a senhora boca suja se encontraram. Mecânicos davam uma olhada no carro do filho dela, enquanto meu irmão tentava-lhe explicar que obviamente não seria um empurrão, estando o freio de mão solto, que quebraria o carro. Ela começou a gritar de forma histérica na garagem e logo foi ouvida por Cíntia, que tomava banho, e por todo o prédio.

Minha irmã até que discute em baixo tom. Sua ironia é suficiente para contra-argumentar sem ter de recorrer aos berros. Entretanto, naquele momento, como diria meu pai, o sangue lhe subiu à cabeça. Se fosse Zezé, babá de todos nós a vida inteira, comentaria que a menina estava “insurtada”. E foi dessa forma, com resto de xampu nos cabelos, que ela desceu atrás da vizinha.

Como Cíntia mesmo viria a contar depois, a vontade naquela hora não era nem discutir nem que a criatura a entendesse; era apenas ter um motivo para sentar-lhe a mão na cara. Na verdade, as ofensas aos seus progenitores ainda estavam atravessadas na garganta desde o telefonema. Por conta disso, ela já desceu botando o dedo na cara da mulher.

– Escuta aqui dona Nair, o seu carro tá quebrado, é? Não percebe que não é um empurrão que vai quebrar um carro. Se esses mecânicos estão dizendo isso é porque são um bando de incompetentes.

– Calma Cíntia – dizia Sérgio, tentando contemporizar.
– Calma nada! Essa velha louca, desbocada, que liga para casa das pessoas para xingar tem de ter respeito pelos outros – gritava ela, atraindo ainda mais a atenção dos moradores.

Todo o ato era consciente, apesar da expressão de falta de controle. Ela só queria a deixa para dar uns safanões na véia. Não demorou muito, mais uns gritinhos sem tirar o dedo da cara dela e estava feito. Na hora que a vizinha agarrou o braço de Cíntia, aconteceu o que se chama na Bahia de “o pau comeu”. Foi um verdadeiro “pega pra capá”. Sérgio a segurava de um lado, os mecânicos se meteram entre ela e a mulher, desceram outros moradores, dona Olga e, claro, minha mãe, que implorava:
– Cíntia, minha filha, tenha calma, não faça isso!
– Eu vou mataaaar esta mulher! – bradava minha irmã, que mesmo nas nossas discussões de criança sempre gostou de uma cena mais dramática. Deve ter sido reflexo das novelas das oito que assistia com as empregadas, dos dramas globais aos enlatados mexicanos, como A Usurpadora, Maria do Bairro e Maria Mercedes.

Na garagem, o povo acabou dando um jeito e cada uma foi levada para um lado. Mas quando todos pensavam que o show havia terminado, um reencontro se deu no corredor do elevador e a discussão reascendeu. Quer dizer, discussão não, porque aquilo era um pandemônio. Agarrada novamente por meu irmão e impedida de cumprir a sua missão de descer o cacete na vizinha, ela não teve dúvidas: puxou a saliva e cuspiu-lhe na cara.

Estava aí o grand finale! Vingou não só meu pai, minha mãe como todas as gerações anteriores na nossa família, além dos agregados. Como diria algum poeta, um cuspe vale mais do que mil palavras. Agora sim, poderia subir, relaxar, acabar com aquela ameaça de ter um infarto daqui a uns 25 anos por não conseguir extrapolar os sentimentos. Não precisavam mais prendê-la. Ela já não queria bater na velha, tinha-lhe ensinado a lição de não telefonar mais para a casa dos outros e ofender seus moradores, principalmente se fossem seus pais.

– Cíntia, minha filha, como você estava nervosa! – ouviu minha irmã de uma moradora, a quem se limitou a dizer com seu sarcasmo tradicional:
– Tinha meus motivos.

Fim de feira, os moradores voltaram para seus apartamentos, a zeladora a falar sozinha pelos corredores e tudo voltou ao normal. Minha mãe e Sérgio subiram atrás de Cíntia, que a essa altura do campeonato já está novamente tranqüila, deitada no sofá, assistindo televisão.

Mais tarde, chega meu pai, o “ladrão de garagem metido a rico”, de quem Cíntia foi tomar as dores sem pensar duas vezes em partir para ignorância. Ele entra em casa, ela olha para ele, finge ignorar sua presença e continuam sem se falar.

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