5 de out. de 2008

Está no sangue

Ser repórter não era exatamente o que minha família esperava de mim. Como os meus primos e meu irmão, a expectativa que girava em torno da minha escolha era algo como administração, engenharia, medicina, direito ou qualquer coisa mais tradicional. Não vem ao caso discutir os motivos agora, mas o fato é que na hora de escolher eu optei por Jornalismo.

Meu pai, como sempre, fez críticas, mas depois de algum tempo dizia para todos o que eu cursava, chegando até mesmo a afirmar que sempre sonhou em ser repórter. Na verdade, ele teria dito a mesma coisa se eu tivesse escolhido ser psicóloga, professora, arquiteta, bancária ou administradora do lar.

Quando eu comecei a trabalhar, lá estava ele com um milhão de informações para me passar. Nada que gerasse primeira página no jornal, mas também não deixava de despertar curiosidade sobre como ele conseguia dados tão rápidos e incomuns para alguém fora do ramo.

Com pouco mais de um ano de trabalho, eu seguia para uma pauta com o motorista e o fotógrafo da equipe de reportagem, quando percebemos uma movimentação estranha em uma das avenidas da cidade. Viaturas de polícia atravessavam canteiros, andavam na contramão, ultrapassam na maior velocidade sugerindo que algo grande estava acontecendo. Imediatamente passamos a segui-los. Íamos em direção à Avenida Ademar de Barros, que leva à orla do bairro de Ondina, onde há uma agência do Banco do Brasil. Coincidentemente uma das que meu pai tinha lá os seus contatos.

É preciso dizer que ele era conhecido como um homem de bancos e supermercados, açougues e feiras. Como meu avô, ele sempre manteve uma rede de relacionamentos nesses pontos. Pensando bem, ele mantém uma rede de relacionamentos onde quer que vá, mas talvez nesses locais seja mais freqüente.

Quando percebemos que poderia ser um assalto a banco, esquecemos da pauta anterior, que nem me lembro mais o que era, mas certamente alguma bobagem de cobertura de seminários ou eventos sem grandes repercussões. Especulávamos o que poderia ter acontecido, quando pegamos a reta final da Ademar de Barros em direção ao banco e vimos outras viaturas realmente seguindo para o local. Foi aí que o fotógrafo, Claudionor, me perguntou se não seria meu pai no ferry-boat, seguindo em direção contrária pela mesma avenida. Não chegamos a ver quem estava ao volante, mas o ferry ou o Opalão, se preferirem, era inconfundível. Não teria sido nada demais se ele não estivesse sendo seguido por outras duas viaturas de polícia. Normalmente consigo manter a calma, mesmo cobrindo notícias sanguinolentas de polícia, mas não é todo dia que o pai da gente acaba fazendo parte da nossa pauta.

Procurei me controlar e paramos no banco. Poderia ser uma simples coincidência. Nada de pânico (recomendação secular do meu próprio pai, que faz o estilo agente 007 horário integral). Talvez, as viaturas estivessem apenas tentando ultrapassá-lo... Temos de pensar em várias possibilidades. Mas talvez por isso mesmo ele também pudesse ter sido levado como refém. Meu Deus!

Paramos então no banco para saber o que tinha acontecido. Na minha cabeça veio o pior: ele estaria no banco no momento do assalto e os bandidos fugiram levando ele. Com isso me assombrando, bati na porta de vidro com força, encostei para tentar minimizar o reflexo e ver alguém lá dentro, quando percebi uma trilha de sangue pelo corredor da agência. Um segurança se aproximou e disse que ninguém poderia entrar.

– Somos da imprensa!
– Pode esquecer, ninguém tem acesso – disse o homem, segurando a arma na cintura.
– A polícia está aqui e os outros dados vocês só terão depois da auditoria –gritou ele lá de dentro com a arrogância tradicional depois que o leite já foi derramado.
– Tudo bem, tudo bem... Pode me dizer, pelo menos, se você conhece o cliente que tem um Opala bege e que deve ter saído daqui há pouco? É que sou filha dele e estou muito preocupada.

Imediatamente o segurança relaxou e entreabriu a porta, o que nos permitiu tirar umas fotos sem o reflexo do vidro.
– Ah, seu Tavares?! – respondeu ele agora amigavelmente.
– Ele esteve aqui sim. Chegou logo depois do assalto e viu a direção que os ladrões tomaram, depois de atirar em um colega nosso que ficou ferido. Quando os policiais chegaram, seu Tavares foi mostrar para onde os bandidos seguiram.

Claaaro!!! Por que eu não pensei nessa possibilidade em se tratando de Antonio Tavares?! É lógico que ele teria visto os assaltantes e prontamente se colocado à disposição para ajudar a polícia! Mais calma então, eu procurei outras informações com o delegado que acabara de chegar. Liguei ainda para minha mãe com o intuito de tranqüilizá-la, caso meu pai tivesse dito que voltaria logo para casa.

Na redação, Claudionor com seu humor de sempre tinha se encarregado de transformar a notícia em meu pai sendo seguido pelos policiais.
– Seu Antonio é uma figura! Ele tinha que estar no meio – brincava a minha editora, Cristina Apulto.

Lá pelas tantas, ainda aguardávamos o fim da auditoria do BB, para liberarmos a matéria com a informação do valor que tinha sido roubado do banco. Já tinha falado com meu pai, sem me deter nos detalhes do fato, pois tinha muita coisa para fazer na redação. Deixei isso para depois, quando certamente teria tempo de ouvi-lo acrescentar um dado novo a cada versão.

Já era umas sete da noite e precisávamos fechar o texto. O banco não repassava informações e continuávamos sem saber quanto tinha sido levado. Não seria a manchete, mas não podíamos desprezar a informação. Foi aí que Cristina me disse:
– Liga para seu pai, ele vai saber.

No calor do fechamento, não dei muita importância, afinal por que ele saberia? Além do mais não poderíamos usá-lo com fonte. Liguei novamente para o BB, que já tinha ficado de enviar o valor da quantia assim que a auditoria acabasse, mas, na dúvida, e como Cris mandou, telefonei para casa.

– Pai, por acaso você sabe quanto foi levado do banco?
Pronto, mal acabei de falar e dei a deixa para a série de investigações. Bastava uma pergunta para atingir o poço de curiosidade que existia dentro dele.

– Não sei, mas vou saber! – respondeu rapidamente, já desligando o telefone.
Poucos minutos depois, alguém me chamava.
– Telefone para você.
– Filha, falei com o gerente, meu amigo, e ele me disse em off. Veja lá, você só pode usar em off. Sabe o que é isso, não é? Off record (fora de gravação), usado por jornalistas para quando a fonte não quer ou não pode ser identificada, é muito usada em ...
– Meu pai, calma! Eu sei muito bem o que isso quer dizer. E aí, você tem o valor? – disse eu, sem me surpreender com mais nada do que ele é capaz.
– Pelo menos R$ 30 mil era o que tinha no caixa quando foi aberto.
– Falou pai, tenho de ir, falo com você em casa.
– Mas olhe lá, hein, ele é meu amigo, você tem de colocar em off...
– Beijo, pai, tchau.
Passei as informações para Cris, que não hesitou em confiar. “Pelo menos R$ 30 mil foram levados durante o assalto a agência do Banco do Brasil, em Ondina”, dizia o lead da matéria.

Por volta das oito e meia da noite chegava o fax do BB. O total era de R$ 34 mil. Não sabíamos de onde apareceram os R$ 4 mil, mas a primeira informação se confirmava totalmente confiável. Talvez ele nunca tivesse sonhado em ser jornalista realmente, mas pelo jeito era alguma coisa que estava no sangue.

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