Vai saber o que deu na cabeça da minha irmã naquele dia. Nem me lembro quantos anos ela tinha, mas já aprontava. E também, sabe-se lá como, ela sempre se safava.
Acabávamos de chegar da escola. Era um dia de aula de Educação Física, o que significava que estávamos grudando de tanto suor, com roupas sujas e sapatos com terra por tudo quanto é lado. Normalmente na aula jogávamos baleado, praticávamos corrida e saíamos do Colégio Antônio Vieira, como meu pai diria, “em petição de miséria”.
Mas não é que chegando em casa deu na cabeça de Cíntia de colocar as meias sujas, marrons de tanta terra, na cristaleira da minha avó! E lá elas ficaram sabe-se lá quanto tempo. O fato é que um belo dia minha avó Edith abre aquele treco. Nem sei por que, pois aqueles copos só eram usados em dias especiais.
– Mirela e Cíntia, venham aqui já! – Iiih! Pensei eu, o que fizemos? Não me lembrava de ter quebrado nada nem ter deixado nenhuma roupa espalhada ou luzes acessas, comida no prato... Correndo pela casa para atendê-la prontamente, deparamos com uma cara nada acolhedora.
É preciso dizer que assim como carinhosa e cuidadosa conosco, minha avó também era uma mulher muito disciplinadora, rígida, que gostava de tudo nos seus devidos lugares. Da mesma forma como estava sempre nos beijando, coçando as nossas costas, acariciando as nossas cabeças, nos dando a benção antes de dormir, ela também era daquelas que exigia respeito, mantinha horários, queria tudo em ordem e não admitia molecagens sérias. E pulando na frente dela depois de chegarmos correndo, ouvimos:
– Escuta aqui suas molequinhas, quem foi que colocou essas meias aqui dentro? – Disse ela com as provas do crime na mão com um cheiro de carniça ainda forte saindo do armário. E foi tentando imaginar como aquelas meias foram parar ali que ouvi minha irmã com a cara mais limpa do mundo responder apontando para mim:
– Foi Mirela, minha “vó”!
Eu fiquei tão chocada com a acusação, com a minha irmã e aquele sorrisinho só dela quanto sabia que estava aprontando, que eu mesma comecei a rir de nervoso. Nem deu tempo de olhar para minha avó novamente quando já fui sendo acusada novamente:
– Ah, então foi você, sua moleca!!!
– Eu não “vó”, não fui eu!!! – Repetia eu indignada, mas sem conseguir conter o riso. Ao mesmo tempo, eu olhava para minha irmã que sabia que estava fazendo uma molecagem, olhando para mim com a maior cara de safada e gostando de ver o que ela mesma armou.
– Foi você sim, se está rindo é porque foi você! – Dizia minha avó, meio abaixada para me olhar bem nos olhos e me repreender.
Nem lembro o que aconteceu depois. Só recordo da carinha de moleca de Cíntia, com os cabelos desgrenhados e aquele meio sorriso de quem causou o incêndio e foi para a praia.
Os anos passaram e ainda antes de minha avó morrer relembrei a história e tentei mais uma vez "limpar a minha honra", no que ela me respondeu com algo assim:
– Eu sei lá, minha gente, quem é que colocou nada ali! Vocês aprontavam sempre, deveriam estar juntas nisso!
E eu, novamente sem conseguir me conter, simplesmente ri.
23 de nov. de 2008
1 de nov. de 2008
Ribamar, tô on-line
A convivência com homens pode ser um grande aprendizado. Não, não é pilhéria. Às vezes podemos tirar grandes lições com eles. Com meu irmão é assim. Quieto, na dele, ele puxou mais à minha mãe. Em uma festa, faz o estilo “canto”, aquele que está sempre ali, meio afastado, com um copo de qualquer coisa na mão, mas não perdoa a mulherada. Quando era mais novo, já fez minha irmã mentir muito. Dependendo da safra, ele a usava de secretária para ajudá-lo a administrar tantos rolos.
Depois que casou ficou mais quieto. Arriscaria até a dizer, família mesmo. Mas o casamento durou o tempo que tinha de durar e, hoje, divorciado ele não esquenta a cabeça.
Em Salvador, estávamos ele e eu vendo televisão quando o telefone tocou. Era uma namorada que uma sexta sim a outra também tinha uma desculpa para não se encontrarem. Ela trabalhava muito e tinha como foco a carreira de advogada. Já ele, piloto de avião, procurava descansar ao máximo quando estava de folga, como era o caso.
Naquela sexta, particularmente, eles já tinham combinado, desde cedo, de sair não sei pra onde. Apesar de discreto, ele também deixou escapar que estava de saco cheio das desculpas de trabalho da “vítima”. Pensei comigo: a cobra vai fumar se ela vier com algum papinho de que não dá para sair.
Mesmo depois de comentar que ela iria dar um cano, ele não demonstrava preocupação. Jantamos, ele tomou banho e se vestia para sair quando o telefone tocou. Iiih! Ia ser agora. Se fosse ela, já estava vendo a cena: discussão no telefone, chateação, ele ficaria aborrecido e depois um dos dois ligaria novamente. Enfim, aquela aporrinhação de casal.
E era ela mesma. Com o telefone no ouvido, ele ainda sem camisa andava pela casa procurando alguma coisa. Só dizia sim, tá, ok, depois a gente se fala... Fiquei esperando algum piti bem dramático, mais comum entre a minha raça, digo, a feminina. Achei que viesse algum discurso do tipo: chega, vou terminar, essa palhaçada acabou, vou arranjar outra, vou ligar para não sei quem, vou fazer e acontecer blábláblá...
Mas que nada. Ele achou a camisa que queria e a vestia ao mesmo tempo em que procurava o celular. Discou um pin, pin, pin, pon, pen, pon, pin e na seqüência mandou essa: “Alô, Ribamar, sou eu, tô on-line”. E com o amigo e certamente outros saiu; voltou depois das quatro da manhã e passou um sábado sem nenhum sinal de aborrecimento. Na folga da sexta seguinte, sequer esperou marcar nada. Uma engenheira já o esperava para curtirem o fim de semana juntos.
Depois que casou ficou mais quieto. Arriscaria até a dizer, família mesmo. Mas o casamento durou o tempo que tinha de durar e, hoje, divorciado ele não esquenta a cabeça.
Em Salvador, estávamos ele e eu vendo televisão quando o telefone tocou. Era uma namorada que uma sexta sim a outra também tinha uma desculpa para não se encontrarem. Ela trabalhava muito e tinha como foco a carreira de advogada. Já ele, piloto de avião, procurava descansar ao máximo quando estava de folga, como era o caso.
Naquela sexta, particularmente, eles já tinham combinado, desde cedo, de sair não sei pra onde. Apesar de discreto, ele também deixou escapar que estava de saco cheio das desculpas de trabalho da “vítima”. Pensei comigo: a cobra vai fumar se ela vier com algum papinho de que não dá para sair.
Mesmo depois de comentar que ela iria dar um cano, ele não demonstrava preocupação. Jantamos, ele tomou banho e se vestia para sair quando o telefone tocou. Iiih! Ia ser agora. Se fosse ela, já estava vendo a cena: discussão no telefone, chateação, ele ficaria aborrecido e depois um dos dois ligaria novamente. Enfim, aquela aporrinhação de casal.
E era ela mesma. Com o telefone no ouvido, ele ainda sem camisa andava pela casa procurando alguma coisa. Só dizia sim, tá, ok, depois a gente se fala... Fiquei esperando algum piti bem dramático, mais comum entre a minha raça, digo, a feminina. Achei que viesse algum discurso do tipo: chega, vou terminar, essa palhaçada acabou, vou arranjar outra, vou ligar para não sei quem, vou fazer e acontecer blábláblá...
Mas que nada. Ele achou a camisa que queria e a vestia ao mesmo tempo em que procurava o celular. Discou um pin, pin, pin, pon, pen, pon, pin e na seqüência mandou essa: “Alô, Ribamar, sou eu, tô on-line”. E com o amigo e certamente outros saiu; voltou depois das quatro da manhã e passou um sábado sem nenhum sinal de aborrecimento. Na folga da sexta seguinte, sequer esperou marcar nada. Uma engenheira já o esperava para curtirem o fim de semana juntos.
26 de out. de 2008
Vitamina C
Nem preciso dizer que meu pai e minha “vó” Edith viviam em discussões. Quantas e quantas vezes ele não saiu do apartamento da Barra esbravejando que jamais voltaria, enquanto minha avó praguejava do outro lado com as mãos levantadas e respondia que nunca mais se dirigiria a ele novamente sob o risco de Deus puni-la se ela quebrasse com a palavra. É óbvio que Deus nunca levou isso a sério.
Os motivos eram variados, mas sempre por conta de opiniões divergentes sobre dinheiro, parentes, confiança demais a algum empregado, falta de pulso com vizinhos folgados e por aí vai. Às vezes a conversa começava até bem, mas bastava uma bobagem, um jeito de olhar mais irônico de um deles ou uma palavra considerada mais sarcástica para aquecer os ânimos. Menos até. Com minha avó ficando surda, vira e mexe ela perguntava: “O que Antonio, como é?”. E aí o bicho pegava: “Não é possível, Edith, faça uma lavagem nesse ouvido, você está completamente surda!”. Ele então se aproximava ainda mais dela, mais do que sempre já estavam, e começava a repetir em voz alta até ela dizer para ele parar, porque ela “não era surda!”. Enfim, coisa de doido.
Mas depois eles sempre se entendiam. Normalmente 15 minutos depois, quando meu pai ou ela tinha alguma outra “novidade” para contar. Mais ainda, dependiam disso diariamente. Acho mesmo que meu pai ficava nervoso com a surdez de minha avó com medo de um dia não tê-la para ouvi-lo. Eram “tecnicamente” genro e sogra, porém na vida eram muito mais: cúmplices de fofocas, solidários quando precisavam de algo, repressores dos empregados quando tinham a mesma opinião, teimosos quando se achavam certos, mas sempre família, sempre contando um com o outro, até mesmo brigados.
Prova disso foi quando em uma das poucas idas da minha avó ao médico – proporcionalmente aos 95 anos de idade dela, claro – foi diagnosticada uma anemia e entre outras coisas ela precisava de vitamina C.
– Eu não disse, eu não disse?! Você não come, não se alimenta, por isso está aí, ó, raquítica, com essas perninhas magrinhas, pele e osso!
– Ora Antonio, me deixe, eu não estou sentindo nada. Esses médicos não têm o que fazer e ficam gastando receita para justificar a consulta. Besteira
Depois desse discurso que ela sempre fazia com a segurança que tinha em tudo que falava, ele se levantou repentinamente e disse:
– Alguém quer alguma coisa da rua? Vou ali.
O “ali” ninguém nunca sabia aonde e também não ninguém perguntava. Era bom ele dar uma saidinha para a casa ficar silenciosa por um tempo.
– Vai Antonio, vai. Não pára quieto esse homem. Parece que tem fogo no rabo – Dizia minha avó, que não dava o braço a torcer, mas sentia uma falta danada daquela conversinha diária de fim de tarde. E ele foi. Mas não demorou muito. Como de costume, voltou buzinando do carro para o desespero de Zezé, minha eterna babá e anjo da guarda, que para não vê-lo nervoso descia correndo o quanto podia para ajudá-lo certamente a pegar alguma coisa que ele tinha trazido.
– Edith, Edith! – Berrava ele lá debaixo com o porta-malas aberto. Márcio, o vizinho do prédio em frente, a quem ele uma vez ameaçou matar sabe-se lá porque, espiava da varanda o que deveria ser mais alguma novidade de seu Antonio. A solteirona do prédio ao lado, sempre na varanda por qualquer coisa, também queria saber o motivo do berreiro.
– Edith! Edith! – esgoelava-se meu pai, a espera de minha avó na varanda do prédio.
– Fala Antonio, o que é pelo amor de Deus? Fica gritando aí, incomodando os vizinhos!
– Olha aí! Manda Maria José descer para me ajudar aqui.
– O que você comprou Antonio, eu já fiz supermercado, no que você foi gastar dessa vez? – Repetia minha avó, como sempre, por achar meu pai um descontrolado quando se tratava de compras.
Na verdade, ela o achava um descontrolado para tudo. E era mesmo. Aquele era um exemplo. Preocupado com a necessidade de vitamina C da minha avó, ele finalmente esclareceu:
– Aqui ó, você não está precisando de vitamina C? Eu trouxe. E levantou um dos dois sacos com nada mais nada menos do que dois centos de laranja pêra.
– Mas Antonio!!!!!
Os motivos eram variados, mas sempre por conta de opiniões divergentes sobre dinheiro, parentes, confiança demais a algum empregado, falta de pulso com vizinhos folgados e por aí vai. Às vezes a conversa começava até bem, mas bastava uma bobagem, um jeito de olhar mais irônico de um deles ou uma palavra considerada mais sarcástica para aquecer os ânimos. Menos até. Com minha avó ficando surda, vira e mexe ela perguntava: “O que Antonio, como é?”. E aí o bicho pegava: “Não é possível, Edith, faça uma lavagem nesse ouvido, você está completamente surda!”. Ele então se aproximava ainda mais dela, mais do que sempre já estavam, e começava a repetir em voz alta até ela dizer para ele parar, porque ela “não era surda!”. Enfim, coisa de doido.
Mas depois eles sempre se entendiam. Normalmente 15 minutos depois, quando meu pai ou ela tinha alguma outra “novidade” para contar. Mais ainda, dependiam disso diariamente. Acho mesmo que meu pai ficava nervoso com a surdez de minha avó com medo de um dia não tê-la para ouvi-lo. Eram “tecnicamente” genro e sogra, porém na vida eram muito mais: cúmplices de fofocas, solidários quando precisavam de algo, repressores dos empregados quando tinham a mesma opinião, teimosos quando se achavam certos, mas sempre família, sempre contando um com o outro, até mesmo brigados.
Prova disso foi quando em uma das poucas idas da minha avó ao médico – proporcionalmente aos 95 anos de idade dela, claro – foi diagnosticada uma anemia e entre outras coisas ela precisava de vitamina C.
– Eu não disse, eu não disse?! Você não come, não se alimenta, por isso está aí, ó, raquítica, com essas perninhas magrinhas, pele e osso!
– Ora Antonio, me deixe, eu não estou sentindo nada. Esses médicos não têm o que fazer e ficam gastando receita para justificar a consulta. Besteira
Depois desse discurso que ela sempre fazia com a segurança que tinha em tudo que falava, ele se levantou repentinamente e disse:
– Alguém quer alguma coisa da rua? Vou ali.
O “ali” ninguém nunca sabia aonde e também não ninguém perguntava. Era bom ele dar uma saidinha para a casa ficar silenciosa por um tempo.
– Vai Antonio, vai. Não pára quieto esse homem. Parece que tem fogo no rabo – Dizia minha avó, que não dava o braço a torcer, mas sentia uma falta danada daquela conversinha diária de fim de tarde. E ele foi. Mas não demorou muito. Como de costume, voltou buzinando do carro para o desespero de Zezé, minha eterna babá e anjo da guarda, que para não vê-lo nervoso descia correndo o quanto podia para ajudá-lo certamente a pegar alguma coisa que ele tinha trazido.
– Edith, Edith! – Berrava ele lá debaixo com o porta-malas aberto. Márcio, o vizinho do prédio em frente, a quem ele uma vez ameaçou matar sabe-se lá porque, espiava da varanda o que deveria ser mais alguma novidade de seu Antonio. A solteirona do prédio ao lado, sempre na varanda por qualquer coisa, também queria saber o motivo do berreiro.
– Edith! Edith! – esgoelava-se meu pai, a espera de minha avó na varanda do prédio.
– Fala Antonio, o que é pelo amor de Deus? Fica gritando aí, incomodando os vizinhos!
– Olha aí! Manda Maria José descer para me ajudar aqui.
– O que você comprou Antonio, eu já fiz supermercado, no que você foi gastar dessa vez? – Repetia minha avó, como sempre, por achar meu pai um descontrolado quando se tratava de compras.
Na verdade, ela o achava um descontrolado para tudo. E era mesmo. Aquele era um exemplo. Preocupado com a necessidade de vitamina C da minha avó, ele finalmente esclareceu:
– Aqui ó, você não está precisando de vitamina C? Eu trouxe. E levantou um dos dois sacos com nada mais nada menos do que dois centos de laranja pêra.
– Mas Antonio!!!!!
18 de out. de 2008
Abstinência de nicotina
Meu tio Alípio, fumante de uma vida, anunciou que parou de fumar. Ouvi isso assim, na lata, em plena festa de aniversário de Mai, minha prima, filha dele. Perguntei:
- Mas tio, você não sente falta de nada?
(Pausa reflexiva)
- Sinto.
(Pausa de curiosidade)
- Você sente falta do quê?
Sinto falta do meu pai.
(Pausa de indignação)
- Sei, sei, mas isso não tem lhe causado nenhum mal-estar?
(Silêncio provocativo)
- A falta do cigarro ou do meu pai?
(Pausa de aporrinhação)
- Não, nada, que ótimo que parou de fumar!
E ele riu, como sempre, sabendo que conseguiria me pirraçar a festa inteira.
- Mas tio, você não sente falta de nada?
(Pausa reflexiva)
- Sinto.
(Pausa de curiosidade)
- Você sente falta do quê?
Sinto falta do meu pai.
(Pausa de indignação)
- Sei, sei, mas isso não tem lhe causado nenhum mal-estar?
(Silêncio provocativo)
- A falta do cigarro ou do meu pai?
(Pausa de aporrinhação)
- Não, nada, que ótimo que parou de fumar!
E ele riu, como sempre, sabendo que conseguiria me pirraçar a festa inteira.
16 de out. de 2008
O desaparecimento
Era comum. Meu pai sempre foi um homem de sumiços. “Vou ali”, era uma de suas frases mais rotineiras. E o ali, às vezes, era demais. Exemplos? Vamos lá: sair de casa à meia noite para dirigir 38 km de estrada e ir ao hotel-fazenda que meu avô tinha para ter uma conversa séria com Zinho, o gerente; ou para ser solidário com o faxineiro do prédio que morava do outro lado da cidade e perdeu o ônibus porque ficou de amasso com a emprega do apartamento que não vem ao caso dizer o número. Coisas desse naipe.
Os sumiços nunca demoravam tanto tempo. E quando isso poderia acontecer, ele ligava para avisar – dava um esporro na gente porque o telefone estava sempre ocupado – e depois de cinco minutos de reclamação dizia que iria chegar mais tarde. Mas, dessa vez, tudo estava muito esquisito. Ele tinha saído de casa logo após o almoço. Disse o seu tradicional “Vou ali” e fim de rastro.
O tempo passava e nada de meu pai. “Que estranho!”, dizia minha mãe com sua tranqüilidade de sempre. O receio era de algum acidente, problema com o carro, violência etc, porque de amantes ela não tinha com o que se preocupar mesmo! Se ele tivesse alguma, não agüentaria guardar segredo.
Por coincidência alguém desceu até a garagem e viu o Opalão por lá. Então ele tinha saído a pé, o que gerou mais nervoso. "Cadê Antonio, minha gente?”, agora sim minha mãe estava realmente alarmada. Meus irmãos, Raimunda, dona Olga, a zeladora, todos tentando imaginar onde ele poderia ter ido.
E foi nesse clima de desespero, com todo mundo quebrando a cabeça, pensando no pior que meu pai aparece. Ele abriu a porta e, desolado, cabisbaixo e muito desanimado, mal cumprimentou a família.
– Pelo amor de Deus, Antonio, onde você estava, homem? – perguntou minha mãe muito nervosa.
– Perdi, pessoal, perdi. Olhe, dureza! – disse ele, aporrinhado.
– Estava na venda de Pedro jogando um dominozinho e perdi para Dinossauro.
Dinossauro? Dominó? Desde quando ele se reunia em vendas, e provavelmente de cachaça, para jogar dominó? Ninguém sabia responder e nem tiveram palavras para perguntar. Atônitos só ouviram ele terminar de explicar com um certo ar reflexivo:
– Mas também, ele é campeão da liga baiana de dominó! Pensando bem, foi uma disputa bem bonita.
Os sumiços nunca demoravam tanto tempo. E quando isso poderia acontecer, ele ligava para avisar – dava um esporro na gente porque o telefone estava sempre ocupado – e depois de cinco minutos de reclamação dizia que iria chegar mais tarde. Mas, dessa vez, tudo estava muito esquisito. Ele tinha saído de casa logo após o almoço. Disse o seu tradicional “Vou ali” e fim de rastro.
O tempo passava e nada de meu pai. “Que estranho!”, dizia minha mãe com sua tranqüilidade de sempre. O receio era de algum acidente, problema com o carro, violência etc, porque de amantes ela não tinha com o que se preocupar mesmo! Se ele tivesse alguma, não agüentaria guardar segredo.
Por coincidência alguém desceu até a garagem e viu o Opalão por lá. Então ele tinha saído a pé, o que gerou mais nervoso. "Cadê Antonio, minha gente?”, agora sim minha mãe estava realmente alarmada. Meus irmãos, Raimunda, dona Olga, a zeladora, todos tentando imaginar onde ele poderia ter ido.
E foi nesse clima de desespero, com todo mundo quebrando a cabeça, pensando no pior que meu pai aparece. Ele abriu a porta e, desolado, cabisbaixo e muito desanimado, mal cumprimentou a família.
– Pelo amor de Deus, Antonio, onde você estava, homem? – perguntou minha mãe muito nervosa.
– Perdi, pessoal, perdi. Olhe, dureza! – disse ele, aporrinhado.
– Estava na venda de Pedro jogando um dominozinho e perdi para Dinossauro.
Dinossauro? Dominó? Desde quando ele se reunia em vendas, e provavelmente de cachaça, para jogar dominó? Ninguém sabia responder e nem tiveram palavras para perguntar. Atônitos só ouviram ele terminar de explicar com um certo ar reflexivo:
– Mas também, ele é campeão da liga baiana de dominó! Pensando bem, foi uma disputa bem bonita.
12 de out. de 2008
Parabéns!
Não adiantava pedir. Meu pai, quando ligava e não estávamos em casa, sempre deixava recados inacabáveis na secretária eletrônica. Foi assim, um dia, quando cheguei em casa, à noite. Depois de duas mensagens de amigos, ouço a voz dele:
– Oi minha filha, aqui é seu pai. Tudo bem por aí?
Eu respondia mentalmente, enquanto ia deixando as coisas que trazia, tirando o sapato, me preparando para tomar banho...
– Aqui está tudo bem. Sua mãe teve uma indisposiçãozinha hoje (ele sempre gostava de falar algo de minha mãe, e se não tinha nada, era uma indisposiçãozinha), sua “vó” está bem... Mas estou ligando mesmo é para lhe dar os parabéns!
Aí eu pensei comigo: “Meu Deus, parabéns?!”. Nunca fui ligada em datas e apesar de já ter esquecido o meu próprio aniversário, já tínhamos passado maio, o que não dava nenhum sentido aquela felicitação.
– Seu pai não esquece, minha filha. Quero sempre o melhor para você e seus irmãos. Que Deus te proteja, te ilumine, tudo de melhor...
Eu já tinha parado de fazer as coisas e prestava atenção exclusivamente na mensagem. Quebrava a cabeça com o que poderia ser, imaginava ter feito algum concurso, passado em algum teste, comprado algum bem material importante, sei lá, ganhado na megasena. Mas nem eu jogava?!
– Então é isso, minha filha. Seu pai vai indo assistir o Jornal Nacional agora. Você viu a roubalheira do governo, uns ladrões! E nós aqui trabalhando duro para bancar esses safados corruptos! Uma vergonha!
Não, não, ele não iria interromper a mensagem para descascar a velha ladainha de sempre sobre os bandidos do governo. Qual era o motivo do parabéns, por que tantas felicitações? Já estava prestes a pegar o telefone e ligar para ele de volta, quando ao final ele se despede:
– Então é isso, minha filha. Uma boa noite para você, descanse direitinho, eu só liguei mesmo para lhe desejar um ótimo Dia das Crianças!
O quê? Então é isso? Dia das Crianças!!
Até hoje os vizinhos devem lembrar de uma louca de 28 anos que ficou horas rindo sozinha depois de ouvir uma secretária eletrônica!
– Oi minha filha, aqui é seu pai. Tudo bem por aí?
Eu respondia mentalmente, enquanto ia deixando as coisas que trazia, tirando o sapato, me preparando para tomar banho...
– Aqui está tudo bem. Sua mãe teve uma indisposiçãozinha hoje (ele sempre gostava de falar algo de minha mãe, e se não tinha nada, era uma indisposiçãozinha), sua “vó” está bem... Mas estou ligando mesmo é para lhe dar os parabéns!
Aí eu pensei comigo: “Meu Deus, parabéns?!”. Nunca fui ligada em datas e apesar de já ter esquecido o meu próprio aniversário, já tínhamos passado maio, o que não dava nenhum sentido aquela felicitação.
– Seu pai não esquece, minha filha. Quero sempre o melhor para você e seus irmãos. Que Deus te proteja, te ilumine, tudo de melhor...
Eu já tinha parado de fazer as coisas e prestava atenção exclusivamente na mensagem. Quebrava a cabeça com o que poderia ser, imaginava ter feito algum concurso, passado em algum teste, comprado algum bem material importante, sei lá, ganhado na megasena. Mas nem eu jogava?!
– Então é isso, minha filha. Seu pai vai indo assistir o Jornal Nacional agora. Você viu a roubalheira do governo, uns ladrões! E nós aqui trabalhando duro para bancar esses safados corruptos! Uma vergonha!
Não, não, ele não iria interromper a mensagem para descascar a velha ladainha de sempre sobre os bandidos do governo. Qual era o motivo do parabéns, por que tantas felicitações? Já estava prestes a pegar o telefone e ligar para ele de volta, quando ao final ele se despede:
– Então é isso, minha filha. Uma boa noite para você, descanse direitinho, eu só liguei mesmo para lhe desejar um ótimo Dia das Crianças!
O quê? Então é isso? Dia das Crianças!!
Até hoje os vizinhos devem lembrar de uma louca de 28 anos que ficou horas rindo sozinha depois de ouvir uma secretária eletrônica!
Não acredite nos universitários
Estava em casa com Alexandre quando meu pai ligou. Ale atendeu e passou para mim. Até então nunca tinham sequer se falado. Ale já tinha ouvido milhões de histórias sobre ele, mas não o conhecia pessoalmente. Meu pai me perguntou como eu estava, relatou sobre como estavam todos por lá, quis saber sobre o clima em São Paulo, me aconselhou a ter cuidado com as mudanças de temperatura... Em um determinado momento, ele começou a falar, como outras vezes, sobre televisão, o programa Show do Milhão e a sua indignação com participação dos universitários para ajudar os concorrentes.
– Olhe minha filha, esses universitários são umas porcarias. Seu pai vai te inscrever no programa, mas quando você for lá não peça ajuda para eles, porque eles não sabem nada! Não sabem nada! Naaada! Acredita que... E lá começava ele a contar alguma coisa sobre o que se passou no programa.
Ale me olhava com curiosidade sobre o que ele poderia estar falando. Passei o telefone para ele ter noção de como eram as conversas, o que fez Ale dar muita risada durante um tempo e me passar de volta antes que ele percebesse.
Meu pai terminou a conversa que eu no final das contas não entendi direito e nos despedimos, enquanto Alexandre comentava o quanto ele era engraçado. Acostumada a saber disso, nem perguntei sobre o que ele falava e rimos juntos.
Menos de um mês depois, meu pai morria. O pior dia da minha vida. Uma dor insuportável, física, cerebral, emocional, que rasga a gente por dentro. Mas acordamos no dia seguinte e no outro e no outro... Os dias se passam e a ausência física começa a ser substituída por lembranças, por recordações de histórias antigas e recentes que têm sempre alguém para contar.
Uma noite, assistindo o tal Show do Milhão, vejo Alexandre sair do quarto gritando:
– Não acreditem nos universitários, eles são umas porcarias, não sabem nada, não sabem nada, N A D A!
Por um instante fiquei catatônica. “Meu Deus, meu pai baixou em Ale, o meu namorado está incorporado!”, pensava eu meio encolhida no sofá em silêncio total. E enquanto mais eu o olhava, mais Ale falava alto:
– Não acreditem nos universitários, porque eles são uma vergonha!
Comecei a ficar realmente assustada, porque até os trejeitos eram iguais.
Após alguns segundos de desespero, vejo Alexandre olhar para mim com cara de satisfação e caindo na risada. Na mesma hora falei:
– O que foi isso Ale, você está louco?
– Ô paixão, desculpa imitar seu pai, mas não agüentei. Naquele dia, ele falando dos universitários foi muito engraçado. Você colocou o fone no meu ouvido e ele não parava de descer o pau nos caras! Agora, ouvindo a TV, não resisti.
Ale voltou para o quarto para se vestir. Eu, mais calma e até um pouco decepcionada, tinha acabado de ver meu namorado desincorporar.
– Olhe minha filha, esses universitários são umas porcarias. Seu pai vai te inscrever no programa, mas quando você for lá não peça ajuda para eles, porque eles não sabem nada! Não sabem nada! Naaada! Acredita que... E lá começava ele a contar alguma coisa sobre o que se passou no programa.
Ale me olhava com curiosidade sobre o que ele poderia estar falando. Passei o telefone para ele ter noção de como eram as conversas, o que fez Ale dar muita risada durante um tempo e me passar de volta antes que ele percebesse.
Meu pai terminou a conversa que eu no final das contas não entendi direito e nos despedimos, enquanto Alexandre comentava o quanto ele era engraçado. Acostumada a saber disso, nem perguntei sobre o que ele falava e rimos juntos.
Menos de um mês depois, meu pai morria. O pior dia da minha vida. Uma dor insuportável, física, cerebral, emocional, que rasga a gente por dentro. Mas acordamos no dia seguinte e no outro e no outro... Os dias se passam e a ausência física começa a ser substituída por lembranças, por recordações de histórias antigas e recentes que têm sempre alguém para contar.
Uma noite, assistindo o tal Show do Milhão, vejo Alexandre sair do quarto gritando:
– Não acreditem nos universitários, eles são umas porcarias, não sabem nada, não sabem nada, N A D A!
Por um instante fiquei catatônica. “Meu Deus, meu pai baixou em Ale, o meu namorado está incorporado!”, pensava eu meio encolhida no sofá em silêncio total. E enquanto mais eu o olhava, mais Ale falava alto:
– Não acreditem nos universitários, porque eles são uma vergonha!
Comecei a ficar realmente assustada, porque até os trejeitos eram iguais.
Após alguns segundos de desespero, vejo Alexandre olhar para mim com cara de satisfação e caindo na risada. Na mesma hora falei:
– O que foi isso Ale, você está louco?
– Ô paixão, desculpa imitar seu pai, mas não agüentei. Naquele dia, ele falando dos universitários foi muito engraçado. Você colocou o fone no meu ouvido e ele não parava de descer o pau nos caras! Agora, ouvindo a TV, não resisti.
Ale voltou para o quarto para se vestir. Eu, mais calma e até um pouco decepcionada, tinha acabado de ver meu namorado desincorporar.
O caso da farinha
Se meu pai pudesse, nos daria o mundo de presente. Um para cada um. Não podíamos pensar em querer nada que ele começava a repetir:
– Não se preocupe, seu pai ver isso para você, filha! E assim era comigo e meus irmãos Sérgio e Cíntia.
O “quando puder” dele era só um vício na frase, porque mesmo quando não podia ele dava um jeito. Era assim com tudo: das porcarias que as crianças enchem o saco para comer à grana para viagens, contas de cartão de crédito e outras esparrelas financeiras que os jovens normalmente se metem. Se fosse brinde então, era uma novela. Tuuuuudo que davam a ele tinha de ser em trio.
– Tenho três filhos: Sérgio, Mirela e Cíntia, não posso levar só um; não tem mais dois? E lá ia o gerente do banco, a moça da promoção em supermercado, a recepcionista de lojas, seja quem fosse, atrás de mais dois qualquer coisa para satisfazê-lo.
Uma noite, já morando em São Paulo, liguei para ele:
– Oi pai, tudo bem?
–Tudo minha filha, sua mãe é que tá sentindo uma dorzinha, sua “vó” continua com aquela encheção, Maria José chorando por tudo, Raimunda que só pensa em dinheiro, Sérgio e Cíntia na rua...
E depois de uns cinco minutos transmitindo o jornal familiar, ele me pergunta:
– E aí, tudo bem com você? – No que eu respondi com uma voz meio dramática, sem me dar conta da mobilização que iria criar:
– Ah pai, aconteceu uma tragédia.
– Ô minha filha, o que foi? – Disse ele já afobado pela resposta.
– Acabou a farinha – respondi em tom de pilhéria.
– Mas minha filha, isso é muito sério, vamos dar um jeito nisso – disse ele, já envolvendo minha mãe na conversa.
– Marante, filha, acabou a farinha de Mirelinha, temos de tomar providências.
Eu ouvindo do outro lado, achava graça dele se preocupar com tudo que houvesse conosco. Parecia ter nascido só para ser pai!
Mas, enfim, desligamos. No dia seguinte saí cedo para trabalhar. Quando voltei para casa, à noite, estacionei o carro e subi direto sem passar na portaria. Antes mesmo de entrar, o porteiro, carinhosamente chamado de “O Velhinho” interfonava sem parar. Ao atender ele me disse que tinha uma encomenda para mim.
– Sedex 10. Gastou bastante essa encomenda, porque está bem pesada! –repetia “o Velhinho”, louco para que eu abrisse a caixa ali mesmo. Dei risada e atendi aos seus apelos de curiosidade.
Comecei a abrir a caixa ali mesmo enquanto ele não tirava os olhos morrendo de ansiedade. Li que estava endereçado a mim e que o remetente era assinado por minha mãe. O que seria? Pensei em alguma data especial, algum presente como ela já havia mandado antes, mas nada demais me ocorreu. Pelo peso, talvez fosse alguns livros que não tinha trazido ainda para São Paulo.
– Que difícil isso, quer que eu ajude? – insistia ”O Velhinho” impaciente.
Depois de alguns minutos tentando arrancar todos os lacres e adesivos restantes, qual não foi a minha surpresa quando abri a caixa e me deparo com nada mais nada menos do que quatro quilos de farinha de copioba! Realmente nada tem graça sem ela. E acabava ali, sob as gargalhadas minha e do “Velhinho” a grande tragédia da minha vida.
– Não se preocupe, seu pai ver isso para você, filha! E assim era comigo e meus irmãos Sérgio e Cíntia.
O “quando puder” dele era só um vício na frase, porque mesmo quando não podia ele dava um jeito. Era assim com tudo: das porcarias que as crianças enchem o saco para comer à grana para viagens, contas de cartão de crédito e outras esparrelas financeiras que os jovens normalmente se metem. Se fosse brinde então, era uma novela. Tuuuuudo que davam a ele tinha de ser em trio.
– Tenho três filhos: Sérgio, Mirela e Cíntia, não posso levar só um; não tem mais dois? E lá ia o gerente do banco, a moça da promoção em supermercado, a recepcionista de lojas, seja quem fosse, atrás de mais dois qualquer coisa para satisfazê-lo.
Uma noite, já morando em São Paulo, liguei para ele:
– Oi pai, tudo bem?
–Tudo minha filha, sua mãe é que tá sentindo uma dorzinha, sua “vó” continua com aquela encheção, Maria José chorando por tudo, Raimunda que só pensa em dinheiro, Sérgio e Cíntia na rua...
E depois de uns cinco minutos transmitindo o jornal familiar, ele me pergunta:
– E aí, tudo bem com você? – No que eu respondi com uma voz meio dramática, sem me dar conta da mobilização que iria criar:
– Ah pai, aconteceu uma tragédia.
– Ô minha filha, o que foi? – Disse ele já afobado pela resposta.
– Acabou a farinha – respondi em tom de pilhéria.
– Mas minha filha, isso é muito sério, vamos dar um jeito nisso – disse ele, já envolvendo minha mãe na conversa.
– Marante, filha, acabou a farinha de Mirelinha, temos de tomar providências.
Eu ouvindo do outro lado, achava graça dele se preocupar com tudo que houvesse conosco. Parecia ter nascido só para ser pai!
Mas, enfim, desligamos. No dia seguinte saí cedo para trabalhar. Quando voltei para casa, à noite, estacionei o carro e subi direto sem passar na portaria. Antes mesmo de entrar, o porteiro, carinhosamente chamado de “O Velhinho” interfonava sem parar. Ao atender ele me disse que tinha uma encomenda para mim.
– Sedex 10. Gastou bastante essa encomenda, porque está bem pesada! –repetia “o Velhinho”, louco para que eu abrisse a caixa ali mesmo. Dei risada e atendi aos seus apelos de curiosidade.
Comecei a abrir a caixa ali mesmo enquanto ele não tirava os olhos morrendo de ansiedade. Li que estava endereçado a mim e que o remetente era assinado por minha mãe. O que seria? Pensei em alguma data especial, algum presente como ela já havia mandado antes, mas nada demais me ocorreu. Pelo peso, talvez fosse alguns livros que não tinha trazido ainda para São Paulo.
– Que difícil isso, quer que eu ajude? – insistia ”O Velhinho” impaciente.
Depois de alguns minutos tentando arrancar todos os lacres e adesivos restantes, qual não foi a minha surpresa quando abri a caixa e me deparo com nada mais nada menos do que quatro quilos de farinha de copioba! Realmente nada tem graça sem ela. E acabava ali, sob as gargalhadas minha e do “Velhinho” a grande tragédia da minha vida.
5 de out. de 2008
Carros antigos
Meu pai é o tipo de pessoa que, se não tiver alguém para conversar, bate-papo com o poste. No trânsito, então, é uma beleza. Bastou emparelhar com alguém, um sinalzinho fechado, aquele engarrafamento no fim de tarde, tudo é uma desculpa para olhar para o lado e puxar conversa com o motorista vizinho.
Não deu outra. Seguindo pela Avenida Paralela, em um de seus passeios dominicais com a minha mãe, ele se deparou com um congestionamento provocado certamente por algum acidente. Pela avenida, uma das principais vias expressas de Salvador, carros e mais carros parados não chegavam sequer a 20 km/h. Dentro deles, os passageiros pareciam estar em uma sauna, resfolegando-se para suportar uma temperatura acima dos 30º.
Braço de fora, como teimosamente de costume, lá estava ele no seu Opala bege, ano 1978, modelo 1979, atento às possíveis movimentações de resgate, sinalização de policiais e, claro, a qualquer manifestação de um companheiro de volante. Foi aí que reparou ao seu lado duas senhoras o olhando insistentemente. Isso não é muito difícil de acontecer. Normalmente ele está metido em alguma conversa animada, para não dizer confusão, atraindo os olhares dos curiosos que gostariam de saber o motivo de tanta exaltação.
Mas nem sempre é necessário ter efetivamente um acontecimento. Há pessoas que naturalmente vivem atraindo a atenção e gerando histórias por onde quer que passem. Nesse dia, parece que o bom e velho ferry-boat, como carinhosamente também era chamado o Opalão, teve a sua parcela de contribuição. Isso porque as duas senhoras estavam bem acomodadas em outro Chevrolet, possivelmente um modelo ainda mais antigo.
Após uma breve troca de olhares, ele resolveu puxar conversa com elas, que mesmo debaixo daquele calor infernal faziam o estilo chá das cinco: cabelos brancos armados com laquê, vestidinho de jérsei (certamente com anáguas) e o tradicional colarzinho de pérolas. Minha mãe, calejada com bate-papos anteriores, cumpria o seu papel indiferente e no, fundo no fundo, deveria achar graça do que chamava as besteiras de meu pai.
– Bonito esse seu aí, hein?! Isso é que é carro bom! O meu aqui também, ó...! Beleza! – dizia ele, gesticulando com o polegar para cima. Estava estabelecido o primeiro contato. Elas respondiam com um balançar de cabeças e sorrisinhos marotos nos lábios, satisfeitas por atraírem a atenção daquele senhor com mais de 60 anos, mas que bem poderia ser um de seus filhos.
Além do braço, ele agora mantinha também a cabeça para fora do carro, para que elas o ouvissem melhor. Anos de prática com a surdez de minha avó. Queria transformar o monólogo em uma conversa mais animada, já que as senhoras se limitavam a dar risadinhas contidas.
– O bom mesmo é o motor, a potência desse carro. Parece um avião, a gente pisa e ele vai longe. Carroceria de ferro, não é qualquer coisa que amassa. Isso é que é carro bom. As senhoras, aí, estão protegidas, confortáveis, vão assim até o Rio de Janeiro e vão bem.
Novamente mais sorrisos e comentários entre elas. Mãos bem agarradas ao volante, a motorista do Opala azul agora era todo derretimento. Estava feliz. Chamava atenção no trânsito. Parecia fazer conjecturas sobre aquela preciosidade. Talvez tivesse sido o carro do seu falecido marido, guardado com o mesmo carinho com que ele o deve ter preservado. Que bom não ter dado ouvido aos filhos e vendido aquela relíquia. Agora, estava ela e sua amiga, ou talvez uma prima encalhada ou uma irmã também viúva, em pleno trânsito, assediadas como cocotinhas.
O tráfego começou a fluir. Lá na frente via-se a movimentação lenta dos primeiros carros da fila da direita.
– Ainda bem! – dizia minha mãe, aguardando que a fila do meio onde estavam também começasse a andar.
– Pois é, parece que agora vai. Vocês vão ver, chega lá na frente não terá sido nada. Esse pessoal é que é mole mesmo, basta um pneuzinho furado, uma coisa boba e todo mundo quer saber o que foi, pensam logo que é sangue. São sanguinários!
À esquerda, as senhoras se mantinham atentas ao que ele dizia em alto e bom som. Balançavam continuamente a cabeça, mas agora sem sorrisos, levando a sério aquelas palavras ditas com tanta ênfase. Finalmente uma caminhonete que estava um carro à frente de meu pai andou. Na seqüência, um Voyage vermelho e posteriormente seria o Opalão. Imediatamente, ele tratou de se despedir.
– Pois é, graças a Deus vamos sair desse calor, tomar uma aguinha de coco, um acarajezinho, amendoim cozido... É isso aí, então. Bom passeio para vocês. Vamos lá, que esses molengas decidiram andar – dizia ele fazendo sinal com a mão como se pedisse passagem para outros carros.
Hipnotizadas, com as cabeças pendentes para o lado, elas não tiveram dúvidas em acompanhá-lo. O carro, que já estava engrenado, arrancou forte, mas pouco se moveu. Ao contrário da fila de meu pai, a delas continuava totalmente parada. A arrancada fez a motorista bater o Chevrolet no fundo de um Uno Mille cheio de garotas que se assustaram com o baque.
Atordoadas, as velhinhas voltaram a olhar para meu pai, que se encontrava com um carro de diferença à frente delas.
– Ah meu Deus! – lamentava minha mãe, imaginando o trânsito parado novamente.
– Calma filha, foi apenas uma batidinha – dizia ele, enquanto colocava a cabeças para fora da janela novamente.
– Nem se preocupem, isso é que é carro bom, não amassou nada. Pára-choque de ferro, não é que nem essas porcarias de plástico que se faz hoje em dia. Podem ficar tranqüilas que não estragou nada.
As senhoras o olhavam boquiabertas, enquanto ele seguia sua fila que agora, efetivamente, começava a fluir. O Chevrolet realmente se mantinha intacto. Sabe como é, pára-choque de ferro! O difícil seria as duas senhoras explicarem isso as mocinhas do Uno, que olhavam os restos do fundo do carro espalhados pelo asfalto.
Não deu outra. Seguindo pela Avenida Paralela, em um de seus passeios dominicais com a minha mãe, ele se deparou com um congestionamento provocado certamente por algum acidente. Pela avenida, uma das principais vias expressas de Salvador, carros e mais carros parados não chegavam sequer a 20 km/h. Dentro deles, os passageiros pareciam estar em uma sauna, resfolegando-se para suportar uma temperatura acima dos 30º.
Braço de fora, como teimosamente de costume, lá estava ele no seu Opala bege, ano 1978, modelo 1979, atento às possíveis movimentações de resgate, sinalização de policiais e, claro, a qualquer manifestação de um companheiro de volante. Foi aí que reparou ao seu lado duas senhoras o olhando insistentemente. Isso não é muito difícil de acontecer. Normalmente ele está metido em alguma conversa animada, para não dizer confusão, atraindo os olhares dos curiosos que gostariam de saber o motivo de tanta exaltação.
Mas nem sempre é necessário ter efetivamente um acontecimento. Há pessoas que naturalmente vivem atraindo a atenção e gerando histórias por onde quer que passem. Nesse dia, parece que o bom e velho ferry-boat, como carinhosamente também era chamado o Opalão, teve a sua parcela de contribuição. Isso porque as duas senhoras estavam bem acomodadas em outro Chevrolet, possivelmente um modelo ainda mais antigo.
Após uma breve troca de olhares, ele resolveu puxar conversa com elas, que mesmo debaixo daquele calor infernal faziam o estilo chá das cinco: cabelos brancos armados com laquê, vestidinho de jérsei (certamente com anáguas) e o tradicional colarzinho de pérolas. Minha mãe, calejada com bate-papos anteriores, cumpria o seu papel indiferente e no, fundo no fundo, deveria achar graça do que chamava as besteiras de meu pai.
– Bonito esse seu aí, hein?! Isso é que é carro bom! O meu aqui também, ó...! Beleza! – dizia ele, gesticulando com o polegar para cima. Estava estabelecido o primeiro contato. Elas respondiam com um balançar de cabeças e sorrisinhos marotos nos lábios, satisfeitas por atraírem a atenção daquele senhor com mais de 60 anos, mas que bem poderia ser um de seus filhos.
Além do braço, ele agora mantinha também a cabeça para fora do carro, para que elas o ouvissem melhor. Anos de prática com a surdez de minha avó. Queria transformar o monólogo em uma conversa mais animada, já que as senhoras se limitavam a dar risadinhas contidas.
– O bom mesmo é o motor, a potência desse carro. Parece um avião, a gente pisa e ele vai longe. Carroceria de ferro, não é qualquer coisa que amassa. Isso é que é carro bom. As senhoras, aí, estão protegidas, confortáveis, vão assim até o Rio de Janeiro e vão bem.
Novamente mais sorrisos e comentários entre elas. Mãos bem agarradas ao volante, a motorista do Opala azul agora era todo derretimento. Estava feliz. Chamava atenção no trânsito. Parecia fazer conjecturas sobre aquela preciosidade. Talvez tivesse sido o carro do seu falecido marido, guardado com o mesmo carinho com que ele o deve ter preservado. Que bom não ter dado ouvido aos filhos e vendido aquela relíquia. Agora, estava ela e sua amiga, ou talvez uma prima encalhada ou uma irmã também viúva, em pleno trânsito, assediadas como cocotinhas.
O tráfego começou a fluir. Lá na frente via-se a movimentação lenta dos primeiros carros da fila da direita.
– Ainda bem! – dizia minha mãe, aguardando que a fila do meio onde estavam também começasse a andar.
– Pois é, parece que agora vai. Vocês vão ver, chega lá na frente não terá sido nada. Esse pessoal é que é mole mesmo, basta um pneuzinho furado, uma coisa boba e todo mundo quer saber o que foi, pensam logo que é sangue. São sanguinários!
À esquerda, as senhoras se mantinham atentas ao que ele dizia em alto e bom som. Balançavam continuamente a cabeça, mas agora sem sorrisos, levando a sério aquelas palavras ditas com tanta ênfase. Finalmente uma caminhonete que estava um carro à frente de meu pai andou. Na seqüência, um Voyage vermelho e posteriormente seria o Opalão. Imediatamente, ele tratou de se despedir.
– Pois é, graças a Deus vamos sair desse calor, tomar uma aguinha de coco, um acarajezinho, amendoim cozido... É isso aí, então. Bom passeio para vocês. Vamos lá, que esses molengas decidiram andar – dizia ele fazendo sinal com a mão como se pedisse passagem para outros carros.
Hipnotizadas, com as cabeças pendentes para o lado, elas não tiveram dúvidas em acompanhá-lo. O carro, que já estava engrenado, arrancou forte, mas pouco se moveu. Ao contrário da fila de meu pai, a delas continuava totalmente parada. A arrancada fez a motorista bater o Chevrolet no fundo de um Uno Mille cheio de garotas que se assustaram com o baque.
Atordoadas, as velhinhas voltaram a olhar para meu pai, que se encontrava com um carro de diferença à frente delas.
– Ah meu Deus! – lamentava minha mãe, imaginando o trânsito parado novamente.
– Calma filha, foi apenas uma batidinha – dizia ele, enquanto colocava a cabeças para fora da janela novamente.
– Nem se preocupem, isso é que é carro bom, não amassou nada. Pára-choque de ferro, não é que nem essas porcarias de plástico que se faz hoje em dia. Podem ficar tranqüilas que não estragou nada.
As senhoras o olhavam boquiabertas, enquanto ele seguia sua fila que agora, efetivamente, começava a fluir. O Chevrolet realmente se mantinha intacto. Sabe como é, pára-choque de ferro! O difícil seria as duas senhoras explicarem isso as mocinhas do Uno, que olhavam os restos do fundo do carro espalhados pelo asfalto.
O encontro
Não sei se já contei para vocês o quanto meu pai gosta de conversar. Não queria ser repetitiva, mas essa característica é fundamental para se entender por que ele sempre se envolve nesses casos surreais. Como tudo é esquisito na história, onde e quando aconteceu não têm mais importância. Recordo-me apenas que foi em algum lugar da orla de Salvador. Tomemos o Jardim de Alah como referência, talvez durante o entardecer soteropolitano.
Por motivos também inexplicáveis, tivemos de parar o carro. Meu pai desceu e logo, como não é raro, alguém falou com ele.
– Oh! Como vai?! Quanto tempo!
– Oh! Tudo bem, tudo bem! Como vão as coisas?!
A alegria era recíproca. Apertos de mãos para lá, abraços para cá. Amigos de infância, certamente.
– Rapaz, quanto tempo eu não lhe vejo! Continua lá?
– Continuo, continuo... – repetia meu pai.
– Eu já saí. Tive uns problemas na família... Meu irmão... Muito doente, sabe como é, né?
– Ô, meu amigo, foi mesmo? Que lástima! Mas e agora como estão as coisas?
– Hum... Acho que não tem jeito não. Mas a vida é assim, idas e vindas...
Do lado de dentro do carro, minha mãe, meus irmãos e eu observávamos tudo com curiosidade. Afinal, quem seria aquele que provocava tanta alegria e comoção ao mesmo tempo. Seriam amigos do trabalho? Talvez um primo distante ou algum bancário. É, algum bancário também poderia ser, são os grandes amigos de meu pai. Bom, finalmente, pareciam se despedir.
– Pois é, bom lhe ver. Um abração na família – disse o homem que aparentava a mesma idade de meu pai. Fez um sinal para minha mãe, que impaciente no banco da frente retribuiu com um aceno discreto característico dela.
– O prazer foi meu, amigão. Tudo de bom para você e força, muita força com seu irmão.
Meu pai entrou no carro ainda consternado. Balançou a cabeça, fez um tisk-tisk com a língua nos dentes e fechou a porta com calma. Saberíamos em mais alguns instantes quem seria o amigão misterioso.
– Na vida tem coisas terríveis! O irmão daquele homem... Doente, muito
doente... Uma pena... Deveria ser tão jovem...
– Mas o que ele tinha, afinal? – perguntou minha mãe.
– Não sei.
– Por que ele contou isso? – continuou.
– Ele estava falando sobre a vida e aí deve ter se lembrado do irmão.
– E quem é esse seu amigo?
– Não sei.
– Você não sabe o nome do seu amigo?
– Não.
– Mas Antônio, o homem foi tão simpático e você esquece o nome dele?
– Não esqueci, eu não sei mesmo.
– Como não? Ficaram conversando horas, batendo-papo. De onde você o
conhece?
– Não conheço.
– Como ficou conversando tanto tempo com um homem que não conhece? – disse minha mãe um pouco exasperada, enquanto meus irmãos e eu acompanhávamos curiosíssimos o final daquele diálogo.
– Ele falou comigo.
– Eu percebi – disse minha mãe.
– Não quis desapontá-lo, dizendo que não o conhecia – respondeu ele, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
Ah! Claro. Entendemos! Ele não quis desapontá-lo! Por que será que
ainda nos surpreendemos com essas atitudes? Já deveríamos estar acostumados. Com todos em silêncio, ele ligou o carro e fomos para casa frustrados.
Por motivos também inexplicáveis, tivemos de parar o carro. Meu pai desceu e logo, como não é raro, alguém falou com ele.
– Oh! Como vai?! Quanto tempo!
– Oh! Tudo bem, tudo bem! Como vão as coisas?!
A alegria era recíproca. Apertos de mãos para lá, abraços para cá. Amigos de infância, certamente.
– Rapaz, quanto tempo eu não lhe vejo! Continua lá?
– Continuo, continuo... – repetia meu pai.
– Eu já saí. Tive uns problemas na família... Meu irmão... Muito doente, sabe como é, né?
– Ô, meu amigo, foi mesmo? Que lástima! Mas e agora como estão as coisas?
– Hum... Acho que não tem jeito não. Mas a vida é assim, idas e vindas...
Do lado de dentro do carro, minha mãe, meus irmãos e eu observávamos tudo com curiosidade. Afinal, quem seria aquele que provocava tanta alegria e comoção ao mesmo tempo. Seriam amigos do trabalho? Talvez um primo distante ou algum bancário. É, algum bancário também poderia ser, são os grandes amigos de meu pai. Bom, finalmente, pareciam se despedir.
– Pois é, bom lhe ver. Um abração na família – disse o homem que aparentava a mesma idade de meu pai. Fez um sinal para minha mãe, que impaciente no banco da frente retribuiu com um aceno discreto característico dela.
– O prazer foi meu, amigão. Tudo de bom para você e força, muita força com seu irmão.
Meu pai entrou no carro ainda consternado. Balançou a cabeça, fez um tisk-tisk com a língua nos dentes e fechou a porta com calma. Saberíamos em mais alguns instantes quem seria o amigão misterioso.
– Na vida tem coisas terríveis! O irmão daquele homem... Doente, muito
doente... Uma pena... Deveria ser tão jovem...
– Mas o que ele tinha, afinal? – perguntou minha mãe.
– Não sei.
– Por que ele contou isso? – continuou.
– Ele estava falando sobre a vida e aí deve ter se lembrado do irmão.
– E quem é esse seu amigo?
– Não sei.
– Você não sabe o nome do seu amigo?
– Não.
– Mas Antônio, o homem foi tão simpático e você esquece o nome dele?
– Não esqueci, eu não sei mesmo.
– Como não? Ficaram conversando horas, batendo-papo. De onde você o
conhece?
– Não conheço.
– Como ficou conversando tanto tempo com um homem que não conhece? – disse minha mãe um pouco exasperada, enquanto meus irmãos e eu acompanhávamos curiosíssimos o final daquele diálogo.
– Ele falou comigo.
– Eu percebi – disse minha mãe.
– Não quis desapontá-lo, dizendo que não o conhecia – respondeu ele, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
Ah! Claro. Entendemos! Ele não quis desapontá-lo! Por que será que
ainda nos surpreendemos com essas atitudes? Já deveríamos estar acostumados. Com todos em silêncio, ele ligou o carro e fomos para casa frustrados.
Está no sangue
Ser repórter não era exatamente o que minha família esperava de mim. Como os meus primos e meu irmão, a expectativa que girava em torno da minha escolha era algo como administração, engenharia, medicina, direito ou qualquer coisa mais tradicional. Não vem ao caso discutir os motivos agora, mas o fato é que na hora de escolher eu optei por Jornalismo.
Meu pai, como sempre, fez críticas, mas depois de algum tempo dizia para todos o que eu cursava, chegando até mesmo a afirmar que sempre sonhou em ser repórter. Na verdade, ele teria dito a mesma coisa se eu tivesse escolhido ser psicóloga, professora, arquiteta, bancária ou administradora do lar.
Quando eu comecei a trabalhar, lá estava ele com um milhão de informações para me passar. Nada que gerasse primeira página no jornal, mas também não deixava de despertar curiosidade sobre como ele conseguia dados tão rápidos e incomuns para alguém fora do ramo.
Com pouco mais de um ano de trabalho, eu seguia para uma pauta com o motorista e o fotógrafo da equipe de reportagem, quando percebemos uma movimentação estranha em uma das avenidas da cidade. Viaturas de polícia atravessavam canteiros, andavam na contramão, ultrapassam na maior velocidade sugerindo que algo grande estava acontecendo. Imediatamente passamos a segui-los. Íamos em direção à Avenida Ademar de Barros, que leva à orla do bairro de Ondina, onde há uma agência do Banco do Brasil. Coincidentemente uma das que meu pai tinha lá os seus contatos.
É preciso dizer que ele era conhecido como um homem de bancos e supermercados, açougues e feiras. Como meu avô, ele sempre manteve uma rede de relacionamentos nesses pontos. Pensando bem, ele mantém uma rede de relacionamentos onde quer que vá, mas talvez nesses locais seja mais freqüente.
Quando percebemos que poderia ser um assalto a banco, esquecemos da pauta anterior, que nem me lembro mais o que era, mas certamente alguma bobagem de cobertura de seminários ou eventos sem grandes repercussões. Especulávamos o que poderia ter acontecido, quando pegamos a reta final da Ademar de Barros em direção ao banco e vimos outras viaturas realmente seguindo para o local. Foi aí que o fotógrafo, Claudionor, me perguntou se não seria meu pai no ferry-boat, seguindo em direção contrária pela mesma avenida. Não chegamos a ver quem estava ao volante, mas o ferry ou o Opalão, se preferirem, era inconfundível. Não teria sido nada demais se ele não estivesse sendo seguido por outras duas viaturas de polícia. Normalmente consigo manter a calma, mesmo cobrindo notícias sanguinolentas de polícia, mas não é todo dia que o pai da gente acaba fazendo parte da nossa pauta.
Procurei me controlar e paramos no banco. Poderia ser uma simples coincidência. Nada de pânico (recomendação secular do meu próprio pai, que faz o estilo agente 007 horário integral). Talvez, as viaturas estivessem apenas tentando ultrapassá-lo... Temos de pensar em várias possibilidades. Mas talvez por isso mesmo ele também pudesse ter sido levado como refém. Meu Deus!
Paramos então no banco para saber o que tinha acontecido. Na minha cabeça veio o pior: ele estaria no banco no momento do assalto e os bandidos fugiram levando ele. Com isso me assombrando, bati na porta de vidro com força, encostei para tentar minimizar o reflexo e ver alguém lá dentro, quando percebi uma trilha de sangue pelo corredor da agência. Um segurança se aproximou e disse que ninguém poderia entrar.
– Somos da imprensa!
– Pode esquecer, ninguém tem acesso – disse o homem, segurando a arma na cintura.
– A polícia está aqui e os outros dados vocês só terão depois da auditoria –gritou ele lá de dentro com a arrogância tradicional depois que o leite já foi derramado.
– Tudo bem, tudo bem... Pode me dizer, pelo menos, se você conhece o cliente que tem um Opala bege e que deve ter saído daqui há pouco? É que sou filha dele e estou muito preocupada.
Imediatamente o segurança relaxou e entreabriu a porta, o que nos permitiu tirar umas fotos sem o reflexo do vidro.
– Ah, seu Tavares?! – respondeu ele agora amigavelmente.
– Ele esteve aqui sim. Chegou logo depois do assalto e viu a direção que os ladrões tomaram, depois de atirar em um colega nosso que ficou ferido. Quando os policiais chegaram, seu Tavares foi mostrar para onde os bandidos seguiram.
Claaaro!!! Por que eu não pensei nessa possibilidade em se tratando de Antonio Tavares?! É lógico que ele teria visto os assaltantes e prontamente se colocado à disposição para ajudar a polícia! Mais calma então, eu procurei outras informações com o delegado que acabara de chegar. Liguei ainda para minha mãe com o intuito de tranqüilizá-la, caso meu pai tivesse dito que voltaria logo para casa.
Na redação, Claudionor com seu humor de sempre tinha se encarregado de transformar a notícia em meu pai sendo seguido pelos policiais.
– Seu Antonio é uma figura! Ele tinha que estar no meio – brincava a minha editora, Cristina Apulto.
Lá pelas tantas, ainda aguardávamos o fim da auditoria do BB, para liberarmos a matéria com a informação do valor que tinha sido roubado do banco. Já tinha falado com meu pai, sem me deter nos detalhes do fato, pois tinha muita coisa para fazer na redação. Deixei isso para depois, quando certamente teria tempo de ouvi-lo acrescentar um dado novo a cada versão.
Já era umas sete da noite e precisávamos fechar o texto. O banco não repassava informações e continuávamos sem saber quanto tinha sido levado. Não seria a manchete, mas não podíamos desprezar a informação. Foi aí que Cristina me disse:
– Liga para seu pai, ele vai saber.
No calor do fechamento, não dei muita importância, afinal por que ele saberia? Além do mais não poderíamos usá-lo com fonte. Liguei novamente para o BB, que já tinha ficado de enviar o valor da quantia assim que a auditoria acabasse, mas, na dúvida, e como Cris mandou, telefonei para casa.
– Pai, por acaso você sabe quanto foi levado do banco?
Pronto, mal acabei de falar e dei a deixa para a série de investigações. Bastava uma pergunta para atingir o poço de curiosidade que existia dentro dele.
– Não sei, mas vou saber! – respondeu rapidamente, já desligando o telefone.
Poucos minutos depois, alguém me chamava.
– Telefone para você.
– Filha, falei com o gerente, meu amigo, e ele me disse em off. Veja lá, você só pode usar em off. Sabe o que é isso, não é? Off record (fora de gravação), usado por jornalistas para quando a fonte não quer ou não pode ser identificada, é muito usada em ...
– Meu pai, calma! Eu sei muito bem o que isso quer dizer. E aí, você tem o valor? – disse eu, sem me surpreender com mais nada do que ele é capaz.
– Pelo menos R$ 30 mil era o que tinha no caixa quando foi aberto.
– Falou pai, tenho de ir, falo com você em casa.
– Mas olhe lá, hein, ele é meu amigo, você tem de colocar em off...
– Beijo, pai, tchau.
Passei as informações para Cris, que não hesitou em confiar. “Pelo menos R$ 30 mil foram levados durante o assalto a agência do Banco do Brasil, em Ondina”, dizia o lead da matéria.
Por volta das oito e meia da noite chegava o fax do BB. O total era de R$ 34 mil. Não sabíamos de onde apareceram os R$ 4 mil, mas a primeira informação se confirmava totalmente confiável. Talvez ele nunca tivesse sonhado em ser jornalista realmente, mas pelo jeito era alguma coisa que estava no sangue.
Meu pai, como sempre, fez críticas, mas depois de algum tempo dizia para todos o que eu cursava, chegando até mesmo a afirmar que sempre sonhou em ser repórter. Na verdade, ele teria dito a mesma coisa se eu tivesse escolhido ser psicóloga, professora, arquiteta, bancária ou administradora do lar.
Quando eu comecei a trabalhar, lá estava ele com um milhão de informações para me passar. Nada que gerasse primeira página no jornal, mas também não deixava de despertar curiosidade sobre como ele conseguia dados tão rápidos e incomuns para alguém fora do ramo.
Com pouco mais de um ano de trabalho, eu seguia para uma pauta com o motorista e o fotógrafo da equipe de reportagem, quando percebemos uma movimentação estranha em uma das avenidas da cidade. Viaturas de polícia atravessavam canteiros, andavam na contramão, ultrapassam na maior velocidade sugerindo que algo grande estava acontecendo. Imediatamente passamos a segui-los. Íamos em direção à Avenida Ademar de Barros, que leva à orla do bairro de Ondina, onde há uma agência do Banco do Brasil. Coincidentemente uma das que meu pai tinha lá os seus contatos.
É preciso dizer que ele era conhecido como um homem de bancos e supermercados, açougues e feiras. Como meu avô, ele sempre manteve uma rede de relacionamentos nesses pontos. Pensando bem, ele mantém uma rede de relacionamentos onde quer que vá, mas talvez nesses locais seja mais freqüente.
Quando percebemos que poderia ser um assalto a banco, esquecemos da pauta anterior, que nem me lembro mais o que era, mas certamente alguma bobagem de cobertura de seminários ou eventos sem grandes repercussões. Especulávamos o que poderia ter acontecido, quando pegamos a reta final da Ademar de Barros em direção ao banco e vimos outras viaturas realmente seguindo para o local. Foi aí que o fotógrafo, Claudionor, me perguntou se não seria meu pai no ferry-boat, seguindo em direção contrária pela mesma avenida. Não chegamos a ver quem estava ao volante, mas o ferry ou o Opalão, se preferirem, era inconfundível. Não teria sido nada demais se ele não estivesse sendo seguido por outras duas viaturas de polícia. Normalmente consigo manter a calma, mesmo cobrindo notícias sanguinolentas de polícia, mas não é todo dia que o pai da gente acaba fazendo parte da nossa pauta.
Procurei me controlar e paramos no banco. Poderia ser uma simples coincidência. Nada de pânico (recomendação secular do meu próprio pai, que faz o estilo agente 007 horário integral). Talvez, as viaturas estivessem apenas tentando ultrapassá-lo... Temos de pensar em várias possibilidades. Mas talvez por isso mesmo ele também pudesse ter sido levado como refém. Meu Deus!
Paramos então no banco para saber o que tinha acontecido. Na minha cabeça veio o pior: ele estaria no banco no momento do assalto e os bandidos fugiram levando ele. Com isso me assombrando, bati na porta de vidro com força, encostei para tentar minimizar o reflexo e ver alguém lá dentro, quando percebi uma trilha de sangue pelo corredor da agência. Um segurança se aproximou e disse que ninguém poderia entrar.
– Somos da imprensa!
– Pode esquecer, ninguém tem acesso – disse o homem, segurando a arma na cintura.
– A polícia está aqui e os outros dados vocês só terão depois da auditoria –gritou ele lá de dentro com a arrogância tradicional depois que o leite já foi derramado.
– Tudo bem, tudo bem... Pode me dizer, pelo menos, se você conhece o cliente que tem um Opala bege e que deve ter saído daqui há pouco? É que sou filha dele e estou muito preocupada.
Imediatamente o segurança relaxou e entreabriu a porta, o que nos permitiu tirar umas fotos sem o reflexo do vidro.
– Ah, seu Tavares?! – respondeu ele agora amigavelmente.
– Ele esteve aqui sim. Chegou logo depois do assalto e viu a direção que os ladrões tomaram, depois de atirar em um colega nosso que ficou ferido. Quando os policiais chegaram, seu Tavares foi mostrar para onde os bandidos seguiram.
Claaaro!!! Por que eu não pensei nessa possibilidade em se tratando de Antonio Tavares?! É lógico que ele teria visto os assaltantes e prontamente se colocado à disposição para ajudar a polícia! Mais calma então, eu procurei outras informações com o delegado que acabara de chegar. Liguei ainda para minha mãe com o intuito de tranqüilizá-la, caso meu pai tivesse dito que voltaria logo para casa.
Na redação, Claudionor com seu humor de sempre tinha se encarregado de transformar a notícia em meu pai sendo seguido pelos policiais.
– Seu Antonio é uma figura! Ele tinha que estar no meio – brincava a minha editora, Cristina Apulto.
Lá pelas tantas, ainda aguardávamos o fim da auditoria do BB, para liberarmos a matéria com a informação do valor que tinha sido roubado do banco. Já tinha falado com meu pai, sem me deter nos detalhes do fato, pois tinha muita coisa para fazer na redação. Deixei isso para depois, quando certamente teria tempo de ouvi-lo acrescentar um dado novo a cada versão.
Já era umas sete da noite e precisávamos fechar o texto. O banco não repassava informações e continuávamos sem saber quanto tinha sido levado. Não seria a manchete, mas não podíamos desprezar a informação. Foi aí que Cristina me disse:
– Liga para seu pai, ele vai saber.
No calor do fechamento, não dei muita importância, afinal por que ele saberia? Além do mais não poderíamos usá-lo com fonte. Liguei novamente para o BB, que já tinha ficado de enviar o valor da quantia assim que a auditoria acabasse, mas, na dúvida, e como Cris mandou, telefonei para casa.
– Pai, por acaso você sabe quanto foi levado do banco?
Pronto, mal acabei de falar e dei a deixa para a série de investigações. Bastava uma pergunta para atingir o poço de curiosidade que existia dentro dele.
– Não sei, mas vou saber! – respondeu rapidamente, já desligando o telefone.
Poucos minutos depois, alguém me chamava.
– Telefone para você.
– Filha, falei com o gerente, meu amigo, e ele me disse em off. Veja lá, você só pode usar em off. Sabe o que é isso, não é? Off record (fora de gravação), usado por jornalistas para quando a fonte não quer ou não pode ser identificada, é muito usada em ...
– Meu pai, calma! Eu sei muito bem o que isso quer dizer. E aí, você tem o valor? – disse eu, sem me surpreender com mais nada do que ele é capaz.
– Pelo menos R$ 30 mil era o que tinha no caixa quando foi aberto.
– Falou pai, tenho de ir, falo com você em casa.
– Mas olhe lá, hein, ele é meu amigo, você tem de colocar em off...
– Beijo, pai, tchau.
Passei as informações para Cris, que não hesitou em confiar. “Pelo menos R$ 30 mil foram levados durante o assalto a agência do Banco do Brasil, em Ondina”, dizia o lead da matéria.
Por volta das oito e meia da noite chegava o fax do BB. O total era de R$ 34 mil. Não sabíamos de onde apareceram os R$ 4 mil, mas a primeira informação se confirmava totalmente confiável. Talvez ele nunca tivesse sonhado em ser jornalista realmente, mas pelo jeito era alguma coisa que estava no sangue.
O coco
Com diria minha avó, eles viviam se pegando. Meu pai e minha irmã, vira e mexe, ainda discutem sobre as coisas mais banais do mundo. Bom, meu pai discute sobre as coisas mais banais com qualquer um. Mas Cíntia faz o tipo rebelde sem causa que gosta de uma polêmica. Na verdade, ela deveria ser atriz. Depois conto por quê.
Às vezes, no entanto, ela dá uma de teimosa silenciosa. Aquele tipo que ouve como deve ser feito, mas só faz do jeito dela. Meu próprio relacionamento com minha irmã serve de exemplo. Eu argumento sobre algo, descrevo uma tese, rezo uma missa sob o olhar mais tranqüilo e atento que alguém pode lançar sobre o outro, porém na prática ela continua agindo como se a conversa não tivesse existido.
Indo para casa de minha avó com meu pai, ela comia um coco, enquanto ele dirigia, inacreditavelmente em silêncio, até que ela, depois de ter raspado toda a casca jogou uma banda da fruta pela janela.
– VOCÊ ESTÁ LOUCA?! – esbravejou ele.
– Como é que se joga uma banda de coco pela janela?!
Ela o olhou de canto, enquanto já raspava a outra banda.
– Não vê que pode provocar um acidente, pode matar alguém?! É uma irresponsabilidade total, um perigo! Sabe que é proibido, se um guarda flagrar, você pode ser presa, PRE-SA! Blablablá...
Pronto, o discurso tinha começado. Chegaria à casa de minha avó e ele continuaria falando da ameaça assassina de se jogar um coco pela janela. Realmente iria longe se ela não o interrompesse após o término de uma frase mais incisiva.
– Pronto? Acabou?
– Acabei. Disse ele, realmente mais calmo, achando que ela agora estaria consciente depois daquele sermão.
Ela então deu uma limpadinha nas mãos, com um ar “patrícia” de ser toda vez que despreza a opinião dos outros e disse sem mudar o tom de voz:
– Então se prepare porque eu vou jogar a outra banda.
Estava feito...
– MAS SERÁ QUE VOCÊ NÃO PERCEBE QUE...
Às vezes, no entanto, ela dá uma de teimosa silenciosa. Aquele tipo que ouve como deve ser feito, mas só faz do jeito dela. Meu próprio relacionamento com minha irmã serve de exemplo. Eu argumento sobre algo, descrevo uma tese, rezo uma missa sob o olhar mais tranqüilo e atento que alguém pode lançar sobre o outro, porém na prática ela continua agindo como se a conversa não tivesse existido.
Indo para casa de minha avó com meu pai, ela comia um coco, enquanto ele dirigia, inacreditavelmente em silêncio, até que ela, depois de ter raspado toda a casca jogou uma banda da fruta pela janela.
– VOCÊ ESTÁ LOUCA?! – esbravejou ele.
– Como é que se joga uma banda de coco pela janela?!
Ela o olhou de canto, enquanto já raspava a outra banda.
– Não vê que pode provocar um acidente, pode matar alguém?! É uma irresponsabilidade total, um perigo! Sabe que é proibido, se um guarda flagrar, você pode ser presa, PRE-SA! Blablablá...
Pronto, o discurso tinha começado. Chegaria à casa de minha avó e ele continuaria falando da ameaça assassina de se jogar um coco pela janela. Realmente iria longe se ela não o interrompesse após o término de uma frase mais incisiva.
– Pronto? Acabou?
– Acabei. Disse ele, realmente mais calmo, achando que ela agora estaria consciente depois daquele sermão.
Ela então deu uma limpadinha nas mãos, com um ar “patrícia” de ser toda vez que despreza a opinião dos outros e disse sem mudar o tom de voz:
– Então se prepare porque eu vou jogar a outra banda.
Estava feito...
– MAS SERÁ QUE VOCÊ NÃO PERCEBE QUE...
Futebol
A partida era pela semifinal da Copa Brasil de 1999. O último campeonato brasileiro antes do ano 2000. Em campo Vitória e Atlético Mineiro, transmitido ao vivo. Todas as vezes que começava o jogo do Negão, como é carinhosamente chamado o Vitória, eu ligava para meu pai ou vice-versa.
Discutíamos como estava a equipe, fazíamos especulações a respeito de como o time iria jogar, essas coisas. Não que eu seja uma expert em futebol, era apenas mais uma ligação que tinha com meu pai, de quem herdei o gosto pelo esporte e pelo time rubro-negro.
Discutidas as preliminares do jogo, pão de queijo no forno e alguns amigos em casa, começamos a assistir. O jogo estava equilibrado. Primeiro tempo 0 a 0. No intervalo, eu e meu pai voltamos a nos falar.
– O que você está achando? – perguntei.
– É... Deveria ter feito um gol no primeiro tempo, mas está indo bem. Não sei, não sei...
Falamos ainda alguma coisa e desligamos. Em casa, eu e meus amigos comíamos os pãezinhos regados a refrigerante e cerveja. Alaíde acabara de chegar. Foi só pela festa. Não é nenhuma fanática por futebol.
– E aí, estamos torcendo para quem? Perguntou ela.
– Pro Vitória, é claro! Respondi, dizendo para se concentrar nos jogadores de
camisa vermelha e preta.
Depois de ouvir o pessoal se queixar do juiz, ela queria saber qual o número da camisa dele para identificá-lo melhor. Tudo bem, tudo bem... O importante era o pensamento positivo. De qualquer forma, deixamos claro que o Vitória era o time rubro negro, ou seja, de camisa vermelha e preta. Vai saber! Já que ela torce pelo Corinthians, poderia se empolgar com a camisa preta-e-branca do Galo.
Recomeça o jogo. O Vitória tem de ganhar! O empate favorecia o time mineiro, que já tinha ganhado o primeiro jogo por 3X0. O tempo passa e as jogadas são mal aproveitadas. Na torcida, vemos um cara de preto e vermelho engolindo um galo de borracha, sabe-se lá Deus como. A torcedora símbolo do Vitória, que parece o cão chupando manga, também é focalizada pelas câmeras em total clima de tensão.
Gritávamos em casa. Já tínhamos esquecido os pães de queijo. Claudinho, que é Bahia, virara Vitória desde criancinha. Cristiane, amiga dele, que torce para o São Paulo, também sofria conosco.
Gol. GOOOOOOOOOLLLLLLLLLL!!!!! Ufa, finalmente, 1X0 Vitória! Enquanto ligava para meu pai (também comentávamos os gols), o Galo fez o seu, aproveitando a baixa guarda do Vitória.
– Pô meu pai, cê viu.
– Pois é, quem não faz toma. Agora o negócio aqui tá feio, incontrolável.
– Como assim incontrolável. O time ainda tem chance.
– Não, eu estou falando de sua mãe. Ela está incontrolável.
– Como assim, o que houve?
– Essa história do Vitória estar perdendo, ela está culpando o juiz – disse ele, falando baixinho.
– Mas nem Vitória ela é?!
– Minha filha, – diz ele meio que tapando o fone – ela está aqui impossível! Xingando!
Minha mãe xingando?! Refleti. Ela nem é disso. Faz mais o estilo nem aí, do tipo, é apenas um jogo. Normalmente esse papel é de meu pai, que de cabeça quente recorre a todos os palavrões.
– Pois é, xingando. Repetiu ele. “Juiz viado, V I-A-D O!” Contou ele, imitando-a, tentando falar baixo para que ela não ouvisse. Com o telefone no ouvido e de olho na televisão vejo outra jogada perigosa do Atlético e o Vitória correndo outro risco de gol.
– Viado, viado...
Realmente é minha mãe xingando do lado de lá.
– Filha, peraí! Olha esses palavrões... Intervém meu pai.
O clima esquenta. Vitória parte para o ataque, mas o juiz dá falta contra o time.
– VIAAAAAAADO!!!!!!
– Filha, assim não dá, olha os vizinhos!
– Vizinhos?! – parece que ela o ouve por um breve instante...
– ...
– VIZINHOS VIADOS, VIADOS, VIADOS...
O Vitória faz o segundo gol depois de mais de 40 minutos de jogo. 2X1 para o Negão. Gritos aqui e do outro lado da linha. Ninguém mais se lembra quem são os viados.
Discutíamos como estava a equipe, fazíamos especulações a respeito de como o time iria jogar, essas coisas. Não que eu seja uma expert em futebol, era apenas mais uma ligação que tinha com meu pai, de quem herdei o gosto pelo esporte e pelo time rubro-negro.
Discutidas as preliminares do jogo, pão de queijo no forno e alguns amigos em casa, começamos a assistir. O jogo estava equilibrado. Primeiro tempo 0 a 0. No intervalo, eu e meu pai voltamos a nos falar.
– O que você está achando? – perguntei.
– É... Deveria ter feito um gol no primeiro tempo, mas está indo bem. Não sei, não sei...
Falamos ainda alguma coisa e desligamos. Em casa, eu e meus amigos comíamos os pãezinhos regados a refrigerante e cerveja. Alaíde acabara de chegar. Foi só pela festa. Não é nenhuma fanática por futebol.
– E aí, estamos torcendo para quem? Perguntou ela.
– Pro Vitória, é claro! Respondi, dizendo para se concentrar nos jogadores de
camisa vermelha e preta.
Depois de ouvir o pessoal se queixar do juiz, ela queria saber qual o número da camisa dele para identificá-lo melhor. Tudo bem, tudo bem... O importante era o pensamento positivo. De qualquer forma, deixamos claro que o Vitória era o time rubro negro, ou seja, de camisa vermelha e preta. Vai saber! Já que ela torce pelo Corinthians, poderia se empolgar com a camisa preta-e-branca do Galo.
Recomeça o jogo. O Vitória tem de ganhar! O empate favorecia o time mineiro, que já tinha ganhado o primeiro jogo por 3X0. O tempo passa e as jogadas são mal aproveitadas. Na torcida, vemos um cara de preto e vermelho engolindo um galo de borracha, sabe-se lá Deus como. A torcedora símbolo do Vitória, que parece o cão chupando manga, também é focalizada pelas câmeras em total clima de tensão.
Gritávamos em casa. Já tínhamos esquecido os pães de queijo. Claudinho, que é Bahia, virara Vitória desde criancinha. Cristiane, amiga dele, que torce para o São Paulo, também sofria conosco.
Gol. GOOOOOOOOOLLLLLLLLLL!!!!! Ufa, finalmente, 1X0 Vitória! Enquanto ligava para meu pai (também comentávamos os gols), o Galo fez o seu, aproveitando a baixa guarda do Vitória.
– Pô meu pai, cê viu.
– Pois é, quem não faz toma. Agora o negócio aqui tá feio, incontrolável.
– Como assim incontrolável. O time ainda tem chance.
– Não, eu estou falando de sua mãe. Ela está incontrolável.
– Como assim, o que houve?
– Essa história do Vitória estar perdendo, ela está culpando o juiz – disse ele, falando baixinho.
– Mas nem Vitória ela é?!
– Minha filha, – diz ele meio que tapando o fone – ela está aqui impossível! Xingando!
Minha mãe xingando?! Refleti. Ela nem é disso. Faz mais o estilo nem aí, do tipo, é apenas um jogo. Normalmente esse papel é de meu pai, que de cabeça quente recorre a todos os palavrões.
– Pois é, xingando. Repetiu ele. “Juiz viado, V I-A-D O!” Contou ele, imitando-a, tentando falar baixo para que ela não ouvisse. Com o telefone no ouvido e de olho na televisão vejo outra jogada perigosa do Atlético e o Vitória correndo outro risco de gol.
– Viado, viado...
Realmente é minha mãe xingando do lado de lá.
– Filha, peraí! Olha esses palavrões... Intervém meu pai.
O clima esquenta. Vitória parte para o ataque, mas o juiz dá falta contra o time.
– VIAAAAAAADO!!!!!!
– Filha, assim não dá, olha os vizinhos!
– Vizinhos?! – parece que ela o ouve por um breve instante...
– ...
– VIZINHOS VIADOS, VIADOS, VIADOS...
O Vitória faz o segundo gol depois de mais de 40 minutos de jogo. 2X1 para o Negão. Gritos aqui e do outro lado da linha. Ninguém mais se lembra quem são os viados.
Ninguém meta a colher
Eles estavam passando por mais uma das crises de silêncio, meu pai e minha irmã. Isso também sempre acontece com Raimunda, a nossa secretária do lar, como meu pai a apresenta. De vez em sempre, meu pai fica sem falar com elas ou elas com ele ou elas entre si, tanto faz.
Calma, calma, eu sei o que vocês estão pensando. Querem saber como ele consegue ficar calado, não é? Pois é, ele não fica. Apenas não fala diretamente com a pessoa. Para isso, tem minha mãe para servir de interlocutora.
– Marante, quero um copo d’água – pede ele na hora do almoço.
– Raimunda, por favor, traga um copo d’água para Antonio – repete minha mãe em tom de deboche para Raimunda, que já está ao seu lado fazendo caras e bocas.
– Está aqui dona Marante – diz Raimunda, colocando o copo à frente de meu pai.
– Obrigado, diz ele, sem exatamente se dirigir a alguém. E por aí seguiam os dias até que voltavam a se falar quando menos se esperava, mais amigos do que nunca.
Dessa vez a crise era com Cíntia. Estavam brigados, sabe-se lá Deus por quê. Mas uma coisa é ela estar brigada com meu pai; outra é alguém brigar com ele. É como amassar o próprio carro. Se a gente bate é chato, agora, se outro é que bate, o bicho pega.
Nesse dia, Cíntia estava na garagem. Ia trabalhar, mas seu carro estava "trancado" pelo de outro morador. Ela pediu a zeladora, dona Olga, que avisasse ao dono do veículo que o retirasse. A mãe dele, porém, mandou dizer que ele tinha viajado e levado a chave.
Quando voltou à garagem, onde esperava o namorado para lhe dar uma carona, percebeu o freio de mão do carro do vizinho solto. Não teve dúvidas, o empurrou, liberando a passagem, avisou ao namorado que tinha resolvido o problema e foi trabalhar.
Na volta, quando chega em casa, ouve o telefonema da vizinha, que a acusava de ter quebrado o carro por tê-lo empurrado. Mesmo já sendo uma senhora, de quem se espera um pouco de compostura, a mulher disse cobras e lagartos para minha mãe e meu pai, que inacreditavelmente se mantiveram passivos. Sem sucesso, Cíntia ouvia a conversa mandando que eles retrucassem.
O xingamento ia desde o mais baixo calão até acusações de meu pai ser um ladrão de vagas, além de um homem metido a rico por ter mais espaços na garagem. Como diria a própria Cíntia: uma palhaçada. Coisa que só a insanidade humana explica: uma briga por um buraco debaixo da terra.
Dois dias depois, meu irmão e a senhora boca suja se encontraram. Mecânicos davam uma olhada no carro do filho dela, enquanto meu irmão tentava-lhe explicar que obviamente não seria um empurrão, estando o freio de mão solto, que quebraria o carro. Ela começou a gritar de forma histérica na garagem e logo foi ouvida por Cíntia, que tomava banho, e por todo o prédio.
Minha irmã até que discute em baixo tom. Sua ironia é suficiente para contra-argumentar sem ter de recorrer aos berros. Entretanto, naquele momento, como diria meu pai, o sangue lhe subiu à cabeça. Se fosse Zezé, babá de todos nós a vida inteira, comentaria que a menina estava “insurtada”. E foi dessa forma, com resto de xampu nos cabelos, que ela desceu atrás da vizinha.
Como Cíntia mesmo viria a contar depois, a vontade naquela hora não era nem discutir nem que a criatura a entendesse; era apenas ter um motivo para sentar-lhe a mão na cara. Na verdade, as ofensas aos seus progenitores ainda estavam atravessadas na garganta desde o telefonema. Por conta disso, ela já desceu botando o dedo na cara da mulher.
– Escuta aqui dona Nair, o seu carro tá quebrado, é? Não percebe que não é um empurrão que vai quebrar um carro. Se esses mecânicos estão dizendo isso é porque são um bando de incompetentes.
– Calma Cíntia – dizia Sérgio, tentando contemporizar.
– Calma nada! Essa velha louca, desbocada, que liga para casa das pessoas para xingar tem de ter respeito pelos outros – gritava ela, atraindo ainda mais a atenção dos moradores.
Todo o ato era consciente, apesar da expressão de falta de controle. Ela só queria a deixa para dar uns safanões na véia. Não demorou muito, mais uns gritinhos sem tirar o dedo da cara dela e estava feito. Na hora que a vizinha agarrou o braço de Cíntia, aconteceu o que se chama na Bahia de “o pau comeu”. Foi um verdadeiro “pega pra capá”. Sérgio a segurava de um lado, os mecânicos se meteram entre ela e a mulher, desceram outros moradores, dona Olga e, claro, minha mãe, que implorava:
– Cíntia, minha filha, tenha calma, não faça isso!
– Eu vou mataaaar esta mulher! – bradava minha irmã, que mesmo nas nossas discussões de criança sempre gostou de uma cena mais dramática. Deve ter sido reflexo das novelas das oito que assistia com as empregadas, dos dramas globais aos enlatados mexicanos, como A Usurpadora, Maria do Bairro e Maria Mercedes.
Na garagem, o povo acabou dando um jeito e cada uma foi levada para um lado. Mas quando todos pensavam que o show havia terminado, um reencontro se deu no corredor do elevador e a discussão reascendeu. Quer dizer, discussão não, porque aquilo era um pandemônio. Agarrada novamente por meu irmão e impedida de cumprir a sua missão de descer o cacete na vizinha, ela não teve dúvidas: puxou a saliva e cuspiu-lhe na cara.
Estava aí o grand finale! Vingou não só meu pai, minha mãe como todas as gerações anteriores na nossa família, além dos agregados. Como diria algum poeta, um cuspe vale mais do que mil palavras. Agora sim, poderia subir, relaxar, acabar com aquela ameaça de ter um infarto daqui a uns 25 anos por não conseguir extrapolar os sentimentos. Não precisavam mais prendê-la. Ela já não queria bater na velha, tinha-lhe ensinado a lição de não telefonar mais para a casa dos outros e ofender seus moradores, principalmente se fossem seus pais.
– Cíntia, minha filha, como você estava nervosa! – ouviu minha irmã de uma moradora, a quem se limitou a dizer com seu sarcasmo tradicional:
– Tinha meus motivos.
Fim de feira, os moradores voltaram para seus apartamentos, a zeladora a falar sozinha pelos corredores e tudo voltou ao normal. Minha mãe e Sérgio subiram atrás de Cíntia, que a essa altura do campeonato já está novamente tranqüila, deitada no sofá, assistindo televisão.
Mais tarde, chega meu pai, o “ladrão de garagem metido a rico”, de quem Cíntia foi tomar as dores sem pensar duas vezes em partir para ignorância. Ele entra em casa, ela olha para ele, finge ignorar sua presença e continuam sem se falar.
Calma, calma, eu sei o que vocês estão pensando. Querem saber como ele consegue ficar calado, não é? Pois é, ele não fica. Apenas não fala diretamente com a pessoa. Para isso, tem minha mãe para servir de interlocutora.
– Marante, quero um copo d’água – pede ele na hora do almoço.
– Raimunda, por favor, traga um copo d’água para Antonio – repete minha mãe em tom de deboche para Raimunda, que já está ao seu lado fazendo caras e bocas.
– Está aqui dona Marante – diz Raimunda, colocando o copo à frente de meu pai.
– Obrigado, diz ele, sem exatamente se dirigir a alguém. E por aí seguiam os dias até que voltavam a se falar quando menos se esperava, mais amigos do que nunca.
Dessa vez a crise era com Cíntia. Estavam brigados, sabe-se lá Deus por quê. Mas uma coisa é ela estar brigada com meu pai; outra é alguém brigar com ele. É como amassar o próprio carro. Se a gente bate é chato, agora, se outro é que bate, o bicho pega.
Nesse dia, Cíntia estava na garagem. Ia trabalhar, mas seu carro estava "trancado" pelo de outro morador. Ela pediu a zeladora, dona Olga, que avisasse ao dono do veículo que o retirasse. A mãe dele, porém, mandou dizer que ele tinha viajado e levado a chave.
Quando voltou à garagem, onde esperava o namorado para lhe dar uma carona, percebeu o freio de mão do carro do vizinho solto. Não teve dúvidas, o empurrou, liberando a passagem, avisou ao namorado que tinha resolvido o problema e foi trabalhar.
Na volta, quando chega em casa, ouve o telefonema da vizinha, que a acusava de ter quebrado o carro por tê-lo empurrado. Mesmo já sendo uma senhora, de quem se espera um pouco de compostura, a mulher disse cobras e lagartos para minha mãe e meu pai, que inacreditavelmente se mantiveram passivos. Sem sucesso, Cíntia ouvia a conversa mandando que eles retrucassem.
O xingamento ia desde o mais baixo calão até acusações de meu pai ser um ladrão de vagas, além de um homem metido a rico por ter mais espaços na garagem. Como diria a própria Cíntia: uma palhaçada. Coisa que só a insanidade humana explica: uma briga por um buraco debaixo da terra.
Dois dias depois, meu irmão e a senhora boca suja se encontraram. Mecânicos davam uma olhada no carro do filho dela, enquanto meu irmão tentava-lhe explicar que obviamente não seria um empurrão, estando o freio de mão solto, que quebraria o carro. Ela começou a gritar de forma histérica na garagem e logo foi ouvida por Cíntia, que tomava banho, e por todo o prédio.
Minha irmã até que discute em baixo tom. Sua ironia é suficiente para contra-argumentar sem ter de recorrer aos berros. Entretanto, naquele momento, como diria meu pai, o sangue lhe subiu à cabeça. Se fosse Zezé, babá de todos nós a vida inteira, comentaria que a menina estava “insurtada”. E foi dessa forma, com resto de xampu nos cabelos, que ela desceu atrás da vizinha.
Como Cíntia mesmo viria a contar depois, a vontade naquela hora não era nem discutir nem que a criatura a entendesse; era apenas ter um motivo para sentar-lhe a mão na cara. Na verdade, as ofensas aos seus progenitores ainda estavam atravessadas na garganta desde o telefonema. Por conta disso, ela já desceu botando o dedo na cara da mulher.
– Escuta aqui dona Nair, o seu carro tá quebrado, é? Não percebe que não é um empurrão que vai quebrar um carro. Se esses mecânicos estão dizendo isso é porque são um bando de incompetentes.
– Calma Cíntia – dizia Sérgio, tentando contemporizar.
– Calma nada! Essa velha louca, desbocada, que liga para casa das pessoas para xingar tem de ter respeito pelos outros – gritava ela, atraindo ainda mais a atenção dos moradores.
Todo o ato era consciente, apesar da expressão de falta de controle. Ela só queria a deixa para dar uns safanões na véia. Não demorou muito, mais uns gritinhos sem tirar o dedo da cara dela e estava feito. Na hora que a vizinha agarrou o braço de Cíntia, aconteceu o que se chama na Bahia de “o pau comeu”. Foi um verdadeiro “pega pra capá”. Sérgio a segurava de um lado, os mecânicos se meteram entre ela e a mulher, desceram outros moradores, dona Olga e, claro, minha mãe, que implorava:
– Cíntia, minha filha, tenha calma, não faça isso!
– Eu vou mataaaar esta mulher! – bradava minha irmã, que mesmo nas nossas discussões de criança sempre gostou de uma cena mais dramática. Deve ter sido reflexo das novelas das oito que assistia com as empregadas, dos dramas globais aos enlatados mexicanos, como A Usurpadora, Maria do Bairro e Maria Mercedes.
Na garagem, o povo acabou dando um jeito e cada uma foi levada para um lado. Mas quando todos pensavam que o show havia terminado, um reencontro se deu no corredor do elevador e a discussão reascendeu. Quer dizer, discussão não, porque aquilo era um pandemônio. Agarrada novamente por meu irmão e impedida de cumprir a sua missão de descer o cacete na vizinha, ela não teve dúvidas: puxou a saliva e cuspiu-lhe na cara.
Estava aí o grand finale! Vingou não só meu pai, minha mãe como todas as gerações anteriores na nossa família, além dos agregados. Como diria algum poeta, um cuspe vale mais do que mil palavras. Agora sim, poderia subir, relaxar, acabar com aquela ameaça de ter um infarto daqui a uns 25 anos por não conseguir extrapolar os sentimentos. Não precisavam mais prendê-la. Ela já não queria bater na velha, tinha-lhe ensinado a lição de não telefonar mais para a casa dos outros e ofender seus moradores, principalmente se fossem seus pais.
– Cíntia, minha filha, como você estava nervosa! – ouviu minha irmã de uma moradora, a quem se limitou a dizer com seu sarcasmo tradicional:
– Tinha meus motivos.
Fim de feira, os moradores voltaram para seus apartamentos, a zeladora a falar sozinha pelos corredores e tudo voltou ao normal. Minha mãe e Sérgio subiram atrás de Cíntia, que a essa altura do campeonato já está novamente tranqüila, deitada no sofá, assistindo televisão.
Mais tarde, chega meu pai, o “ladrão de garagem metido a rico”, de quem Cíntia foi tomar as dores sem pensar duas vezes em partir para ignorância. Ele entra em casa, ela olha para ele, finge ignorar sua presença e continuam sem se falar.
Antonio e Albertino
São gêmeos, apesar de um ano e um dia de diferença. Univitelinos de comportamento. O que um faz o outro não deixa de fazer. Foi assim desde que nasceram, o primeiro no dia 11 de outubro de 1932 e o segundo no dia 12 do mesmo mês e ano seguinte.
Cresceram juntos, brincaram juntos e brigavam... Muito. Mas sempre juntos. Também se divertiam. Assumiam a responsabilidade juntos quando aprontavam, como “fazer praia” na sala de casa com farinha. E, é claro, apanhavam juntos também.
Têm idéias opostas, porém o mesmo temperamento e as mesmas explosões de cólera. Capazes de fazer cair o mundo em meio a uma confusão, refazem os laços com os inimigos muito mais rápido do que grandes amigos.
Não ouvem verdades. Sempre as dizem, com ou sem exagero. O negócio sempre foi deixar a boca em movimento. Eram e continuam sendo incansáveis e imbatíveis nesse ramo.
Enfrentaram a juventude um ao lado do outro. Ficaram conhecidos assim. Antonio e Albertino, carne e unha ... Vale qualquer coisa como comparação. Até nas brigas se completavam. Eram como cão e gato, às vezes mansos.
O primeiro casou em dezembro. O segundo cinco meses depois. Tiveram seis filhos: duas mulheres e um homem cada um. Formaram uma família, se aposentaram, perderam o mesmo pai e a mesma mãe. Estão envelhecendo. Cada um em sua casa, ambos com uma filha morando fora, ambos com as mesmas mulheres, ambos com as mesmas birras. Juntos parecem iguais, separados parecem inseparáveis. Diferentes e gêmeos. Às vezes, a mesma pessoa.
PS.: Antonio morreu em 8 março de 2001. O coração literalmente explodiu com o que se chama de rompimento do miocárdio. Albertino, de saudade, uma gestação depois, no dia 9 de dezembro do mesmo ano. De novo, o miocárdio.
Cresceram juntos, brincaram juntos e brigavam... Muito. Mas sempre juntos. Também se divertiam. Assumiam a responsabilidade juntos quando aprontavam, como “fazer praia” na sala de casa com farinha. E, é claro, apanhavam juntos também.
Têm idéias opostas, porém o mesmo temperamento e as mesmas explosões de cólera. Capazes de fazer cair o mundo em meio a uma confusão, refazem os laços com os inimigos muito mais rápido do que grandes amigos.
Não ouvem verdades. Sempre as dizem, com ou sem exagero. O negócio sempre foi deixar a boca em movimento. Eram e continuam sendo incansáveis e imbatíveis nesse ramo.
Enfrentaram a juventude um ao lado do outro. Ficaram conhecidos assim. Antonio e Albertino, carne e unha ... Vale qualquer coisa como comparação. Até nas brigas se completavam. Eram como cão e gato, às vezes mansos.
O primeiro casou em dezembro. O segundo cinco meses depois. Tiveram seis filhos: duas mulheres e um homem cada um. Formaram uma família, se aposentaram, perderam o mesmo pai e a mesma mãe. Estão envelhecendo. Cada um em sua casa, ambos com uma filha morando fora, ambos com as mesmas mulheres, ambos com as mesmas birras. Juntos parecem iguais, separados parecem inseparáveis. Diferentes e gêmeos. Às vezes, a mesma pessoa.
PS.: Antonio morreu em 8 março de 2001. O coração literalmente explodiu com o que se chama de rompimento do miocárdio. Albertino, de saudade, uma gestação depois, no dia 9 de dezembro do mesmo ano. De novo, o miocárdio.
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