Meu pai é o tipo de pessoa que, se não tiver alguém para conversar, bate-papo com o poste. No trânsito, então, é uma beleza. Bastou emparelhar com alguém, um sinalzinho fechado, aquele engarrafamento no fim de tarde, tudo é uma desculpa para olhar para o lado e puxar conversa com o motorista vizinho.
Não deu outra. Seguindo pela Avenida Paralela, em um de seus passeios dominicais com a minha mãe, ele se deparou com um congestionamento provocado certamente por algum acidente. Pela avenida, uma das principais vias expressas de Salvador, carros e mais carros parados não chegavam sequer a 20 km/h. Dentro deles, os passageiros pareciam estar em uma sauna, resfolegando-se para suportar uma temperatura acima dos 30º.
Braço de fora, como teimosamente de costume, lá estava ele no seu Opala bege, ano 1978, modelo 1979, atento às possíveis movimentações de resgate, sinalização de policiais e, claro, a qualquer manifestação de um companheiro de volante. Foi aí que reparou ao seu lado duas senhoras o olhando insistentemente. Isso não é muito difícil de acontecer. Normalmente ele está metido em alguma conversa animada, para não dizer confusão, atraindo os olhares dos curiosos que gostariam de saber o motivo de tanta exaltação.
Mas nem sempre é necessário ter efetivamente um acontecimento. Há pessoas que naturalmente vivem atraindo a atenção e gerando histórias por onde quer que passem. Nesse dia, parece que o bom e velho ferry-boat, como carinhosamente também era chamado o Opalão, teve a sua parcela de contribuição. Isso porque as duas senhoras estavam bem acomodadas em outro Chevrolet, possivelmente um modelo ainda mais antigo.
Após uma breve troca de olhares, ele resolveu puxar conversa com elas, que mesmo debaixo daquele calor infernal faziam o estilo chá das cinco: cabelos brancos armados com laquê, vestidinho de jérsei (certamente com anáguas) e o tradicional colarzinho de pérolas. Minha mãe, calejada com bate-papos anteriores, cumpria o seu papel indiferente e no, fundo no fundo, deveria achar graça do que chamava as besteiras de meu pai.
– Bonito esse seu aí, hein?! Isso é que é carro bom! O meu aqui também, ó...! Beleza! – dizia ele, gesticulando com o polegar para cima. Estava estabelecido o primeiro contato. Elas respondiam com um balançar de cabeças e sorrisinhos marotos nos lábios, satisfeitas por atraírem a atenção daquele senhor com mais de 60 anos, mas que bem poderia ser um de seus filhos.
Além do braço, ele agora mantinha também a cabeça para fora do carro, para que elas o ouvissem melhor. Anos de prática com a surdez de minha avó. Queria transformar o monólogo em uma conversa mais animada, já que as senhoras se limitavam a dar risadinhas contidas.
– O bom mesmo é o motor, a potência desse carro. Parece um avião, a gente pisa e ele vai longe. Carroceria de ferro, não é qualquer coisa que amassa. Isso é que é carro bom. As senhoras, aí, estão protegidas, confortáveis, vão assim até o Rio de Janeiro e vão bem.
Novamente mais sorrisos e comentários entre elas. Mãos bem agarradas ao volante, a motorista do Opala azul agora era todo derretimento. Estava feliz. Chamava atenção no trânsito. Parecia fazer conjecturas sobre aquela preciosidade. Talvez tivesse sido o carro do seu falecido marido, guardado com o mesmo carinho com que ele o deve ter preservado. Que bom não ter dado ouvido aos filhos e vendido aquela relíquia. Agora, estava ela e sua amiga, ou talvez uma prima encalhada ou uma irmã também viúva, em pleno trânsito, assediadas como cocotinhas.
O tráfego começou a fluir. Lá na frente via-se a movimentação lenta dos primeiros carros da fila da direita.
– Ainda bem! – dizia minha mãe, aguardando que a fila do meio onde estavam também começasse a andar.
– Pois é, parece que agora vai. Vocês vão ver, chega lá na frente não terá sido nada. Esse pessoal é que é mole mesmo, basta um pneuzinho furado, uma coisa boba e todo mundo quer saber o que foi, pensam logo que é sangue. São sanguinários!
À esquerda, as senhoras se mantinham atentas ao que ele dizia em alto e bom som. Balançavam continuamente a cabeça, mas agora sem sorrisos, levando a sério aquelas palavras ditas com tanta ênfase. Finalmente uma caminhonete que estava um carro à frente de meu pai andou. Na seqüência, um Voyage vermelho e posteriormente seria o Opalão. Imediatamente, ele tratou de se despedir.
– Pois é, graças a Deus vamos sair desse calor, tomar uma aguinha de coco, um acarajezinho, amendoim cozido... É isso aí, então. Bom passeio para vocês. Vamos lá, que esses molengas decidiram andar – dizia ele fazendo sinal com a mão como se pedisse passagem para outros carros.
Hipnotizadas, com as cabeças pendentes para o lado, elas não tiveram dúvidas em acompanhá-lo. O carro, que já estava engrenado, arrancou forte, mas pouco se moveu. Ao contrário da fila de meu pai, a delas continuava totalmente parada. A arrancada fez a motorista bater o Chevrolet no fundo de um Uno Mille cheio de garotas que se assustaram com o baque.
Atordoadas, as velhinhas voltaram a olhar para meu pai, que se encontrava com um carro de diferença à frente delas.
– Ah meu Deus! – lamentava minha mãe, imaginando o trânsito parado novamente.
– Calma filha, foi apenas uma batidinha – dizia ele, enquanto colocava a cabeças para fora da janela novamente.
– Nem se preocupem, isso é que é carro bom, não amassou nada. Pára-choque de ferro, não é que nem essas porcarias de plástico que se faz hoje em dia. Podem ficar tranqüilas que não estragou nada.
As senhoras o olhavam boquiabertas, enquanto ele seguia sua fila que agora, efetivamente, começava a fluir. O Chevrolet realmente se mantinha intacto. Sabe como é, pára-choque de ferro! O difícil seria as duas senhoras explicarem isso as mocinhas do Uno, que olhavam os restos do fundo do carro espalhados pelo asfalto.
5 de out. de 2008
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2 comentários:
Agora eu sei porque você é assim! Parabéns pelo blog. Amei!
Cheiro!
Pat
HAHAHAHA... Que figura seu pai!! Queria saber o que passava na cabeça das velhinhas depois que bateu o carro. Deve ter xingado seu pai todo!
Muito bom!!!
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